Lendas que Realmente Existem
ou Existiram – Volume 3.
Considerando que Agosto é o mês do folclore, o nosso colunista Mateus Ernani Heinzmann Bülow escreveu um texto sobre lendas e mitos que possuem um fundo de verdade para o blogue "Recanto da Escritora".
Mateus é um escritor gaúcho que pesquisa sobre lendas nacionais e internacionais há tempos. A sua colaboração com o blogue enriquece o nosso conteúdo e inspira os nossos leitores.
Prepare-se para boas surpresas e aventuras no texto sobre lendas que realmente existem. Boa leitura!
1-Urubu-Rei.
Um dos maiores pássaros das Américas, o Urubu-Rei é figura comum nos mitos de diversos povos nativos, indo desde o México até o sul do Brasil. Entre os Tupis, por exemplo, se conta a lenda de um guerreiro que desejava se casar com a filha do Rei dos Urubus, que enviava seu potencial genro rumo a desafios perigosos. Outro mito fala de Kanassa, um herói do povo Cuicuro que roubou o fogo do Urubu-Rei e o entregou aos humanos.
O Urubu-Rei ganhou esse nome porque ele sempre come a carcaça antes dos outros urubus de espécies menores, como se ele fosse um “monarca” se alimentando antes de seus “súditos”. Os biólogos acreditavam que esta curiosa “formalidade” acontecia devido à força intimidante do Urubu-Rei, maior do que outros urubus.
Hoje se sabe que existe outro motivo interessante pelo
qual essas aves se alimentam antes de outras espécies: O bico e as garras do
Urubu-Rei são mais fortes em comparação com outros carniceiros, e após o
pássaro terminar sua refeição, os seus “primos” menores e mais fracos podem
comer o que restou sem dificuldade, porque o trabalho mais duro foi realizado
pelo Urubu-Rei. Podemos afirmar que o Rei sempre é Majestade.
2-Timbuktu.
Nossa próxima “lenda” é bem real, mas a cultura popular a tornou irreal aos olhos do público médio. Timbuktu, também chamada Tombouctou, é uma antiga cidade localizada no Mali, um país da África Ocidental. Embora diversos grupos nômades passassem pela região, Timbuktu apenas se transformou num assentamento permanente no Século XII, tornando-se uma metrópole próspera durante a Idade Média, graças à mineração de ouro e sal, ao lado das caravanas que passavam pela região.
Devido à sua posição afastada da Europa, ao lado da riqueza impressionante, Timbuktu virou sinônimo de lugar misterioso, quase “mágico”. Os escassos relatos que chegavam aos europeus vinham de viajantes árabes, como era o caso do marroquino Ibn Batutta, que viajou pela região em 1337. Em seu relato de viagem, Ibn Batutta demonstrou certo desapontamento ao descobrir que Timbuktu não era tão próspera como no passado.
O primeiro europeu a visitar
Timbuktu foi o viajante francês René Caillié, que passou pela região em 1827.
Na época, a cidade se recuperava de uma guerra entre os impérios de Bamana e
Massina, e Caillié se espantou com a pobreza da região, perguntando-se como foi
Timbuktu em seu auge. Em 1890, a cidade foi anexada aos territórios coloniais
franceses, uma situação que seguiria até 1960, com a independência do Mali.
Timbuktu hoje é capital da província de mesmo nome.
A associação quase imediata de Timbuktu com um lugar “místico” e fantástico ainda é muito forte na psique moderna: Em 2006, uma pesquisa na Inglaterra revelou que 66% dos jovens acreditavam que Timbuktu se tratava de uma lenda antiga, assim como Atlântida, Lemúria ou El Dorado. Até hoje na língua inglesa é comum ouvir o nome dessa cidade sendo usado como sinônimo de lugar longe demais, algo como as expressões brasileiras “pra lá de Bagdá”, ou “além da Cochinchina”.
3-O Peixe capaz de prever Terremotos.
Cruzando o Oceano Pacífico e alcançando o Japão, encontraremos um raríssimo animal marinho que já foi confundido inúmeras vezes com serpentes do mar, e também é associado com outra lenda nipônica. O Regaleco é um peixe enorme de águas abissais, tão longo quanto uma sucuri adulta, além de tímido aos olhos da superfície.
Na mitologia japonesa, o Regaleco é chamado de Ryugu no Tsukai, o mensageiro do Deus do Mar, e sua missão é alertar os humanos, para evitarem a fúria de seu mestre, capaz de controlar terremotos e maremotos devastadores. Em algumas lendas japonesas, o Regaleco ajuda os heróis a derrotarem vilões, ao servirem de transporte para samurais.
Existe um fundo de verdade nessa lenda, pois o
Regaleco é um animal muito sensível às alterações sísmicas frequentes no Oceano
Pacífico, e costuma subir à superfície para escapar delas, um comportamento
difícil de ver nos peixes de águas abissais. Se você enxergar um desses
peixões, prepare-se para sentir os tremores!
4-Barometz.
Nossa próxima lenda surgiu na Idade Média, em pergaminhos medievais que falavam sobre as misteriosas espécies do Oriente. O Barometz, também conhecido como Carneiro-Vegetal da Tartária, era um misto de animal e planta, descrito como um ovídeo que nascia de uma árvore, ligado a ela por um cordão umbilical. O sangue dessa criatura fantástica era doce como o mel, e a sua lã nunca desfiava.
Uma das descrições mais conhecidas do Barometz aparece
no livro das Viagens do Senhor John Mandeville, onde o carneiro-vegetal aparece
nascendo de frutas parecidas com grandes cabaças. Os Barometz nessa versão
nascem sem lã alguma sobre o corpo, e assim permanecem até atingirem a
maturidade, quando finalmente começam a desenvolver uma lã sedosa e firme.
A explicação para o mistério do carneiro-vegetal é tão singela que soa engraçada: O Barometz provavelmente surgiu no folclore europeu devido a um relato dos soldados que seguiram Alexandre o Grande da Macedônia, em sua viagem na fronteira da atual Índia. Ali os gregos e macedônios tiveram o primeiro contato com a planta do algodão, descrita como uma “árvore que dava lã como se fosse uma ovelha”. É possível que o algodão fosse literalmente apontado como um híbrido de planta e ovídeo, nas traduções do relato.
5-Shambala.
Nossa próxima lenda fala de um reino montanhoso, às vezes descrito como um mundo oculto debaixo da terra, ou como um domínio espiritual. Conforme os textos sagrados hindus que falam do Kalachakra (literalmente, “Roda do Tempo e Destino”), Shambala trata-se de uma nação próspera que existe num tempo diferente do nosso, e que ainda está para surgir entre nós, num conceito muito parecido com o Reino de Deus cristão.
Shambala foi criada pelo grande Rei Suchandra, que
recebeu ensinamentos do próprio Buda, e seu reino contava com 300 mil
habitantes que podiam viver mais de cem anos, ou mesmo eternamente. Montanhas
enormes serviam de barreiras físicas e espirituais entre o nosso mundo e o
reino de Shambala, e quem alcançasse suas fronteiras nunca mais poderia
retornar para casa.
As profecias afirmavam que Shambala seria liderado
pelo Maitreya, a encarnação do Buda, numa batalha contra as forças do mal no
ano 3304 depois da morte de seu antecessor (isso equivale aos anos de 2424 e
2425 no calendário cristão). A Era Dourada após essa grande batalha duraria
1800 anos, devido à natureza cíclica de apogeu e declínio nas duas maiores fés
orientais, o Hinduísmo e o Budismo.
Antes de seguirmos com a
dissecação da lenda de Shambala, devemos observar as primeiras traduções
realizadas pelos ocidentais que visitaram os Himalaias. O primeiro europeu a
descrever Shambala foi o missionário português Estevão Cacella em 1628, durante
uma viagem pelo Butão e os Himalaias orientais. Durante sua estadia, o
missionário descobriu que os habitantes falavam muito do reino de “Xembala”, e
Cacella teorizou que se tratava de como eles denominavam a China.
A primeira expedição em busca de Shambala ocorreu entre 1924 e 1928, liderada pelo arqueólogo russo Nicolas Roerich e sua esposa, Helena. O casal de aventureiros acreditava que havia uma entrada para Shambala nas montanhas Altai, localizadas entre o sul da Rússia e o noroeste da China, mas não encontraram nenhum reino perdido. Existe um curioso fundo de verdade nessa teoria, pois diversos reinos antigos e medievais prosperaram no caminho das Montanhas Altai, que uniam leste e oeste na Rota da Seda.
Outra hipótese da existência de Shambala envolve uma cidade no noroeste da Índia, chamada Sambhal. Na mitologia hindu, Sambhal é o local de nascimento do guerreiro Kalki, a décima e última encarnação de Vishnu, e também o campeão da humanidade na luta final antes de reiniciar o ciclo de Surgimento, Apogeu, Declínio e Queda na interminável “Roda do Tempo” dos hindus. Em algumas versões do Kalachakra, Kalki é descrito como rei de Sambhal, antes da última luta.
Existe um fundo de verdade na suposta longevidade dos habitantes de Shambala, que pode ser observado em povos montanheses, como os nepaleses, os butaneses e tibetanos. A hipóxia (menor oxigenação) à qual eles estão acostumados ajuda a retardar alguns efeitos do envelhecimento, explicando a notável longevidade desses povos.
Uma das curiosidades mais engraçadas da história antiga envolve o cavalo do terceiro imperador romano, Calígula. O fiel animal de montaria do monarca louco se chamava Incitatus (“Impetuoso”, em latim), e quase foi nomeado Consul, uma espécie de representante do governo romano no Senado, por seu dono. Incitatus contava com regalias suntuosas, desde um arreio completo feito em púrpura, e também dezoito serviçais.
As fontes que descrevem a nomeação de um equino ao
cargo de representante do Imperador Romano no Senado partiram de Suetônio e
Cassius Dio, dois historiadores que viveram muitos anos depois do reinado de
Calígula, o que já levanta enormes suspeitas. Nessa época surgiu uma
historiografia crítica à primeira dinastia imperial romana, chamada
Júlio-Claudiana, financiada pela Dinastia Flaviana, outro detalhe que aumenta a
desconfiança quanto à história bizarra.
Duas hipóteses interessantes já foram levantadas por
historiadores posteriores: Na primeira delas, Calígula se decepcionou com a
lista de candidatos ao cargo de Consul, e teria dito com grande sarcasmo: “Eu
prefiro nomear o meu cavalo a qualquer um destes!”. Numa versão mais elaborada
dessa história, Calígula levou Incitatus ao Senado, e o vestiu como se fosse um
senador; o objetivo dessa brincadeira era mostrar aos senadores que um cavalo
era capaz de fazer o trabalho deles.
7-Kalevala e Pohjola.
Seguindo em direção às terras
geladas da Finlândia, nós veremos agora dois lugares míticos que podem muito
bem serem reais. As terras míticas conhecidas como Kalevala (“Terra dos
Heróis”, em finlandês) e Pohjola (“Extremo-Norte”, em finlandês) são separadas
uma da outra por uma ponte de luz, e todos os mitos anteriores ao cristianismo
se passam nesses lugares, desde a criação do mundo à profecia da chegada de
Cristo.
Kalevala é o nome de uma terra mítica, e também serve
como o título da compilação de poemas do autor finlandês Elias Lonrot, que
juntou anos de pesquisa e viagens pelo interior rural de seu país, em busca de
uma mitologia nacional. Na época, a Finlândia era um Grão-Ducado pertencente à
Rússia Czarista, mas os primeiros ensaios rumo à independência total já
apareciam; os poemas que falam de Kalevala tiveram grande importância nesse
processo, algo parecido com os poemas indianistas na construção da identidade
brasileira.
O poema-coletânea é longo,
então farei um apanhado geral da história: Kalevala fala de diversos heróis e
suas curiosas aventuras por diversos lugares, desde os confins do mundo até o
reino dos mortos, como o bardo Vainamoinen, o ferreiro Ilmarinen, o aventureiro
galanteador Lemminkäinen e o órfão Kullervo. A maior adversária desses heróis é
a bruxa Louhi, a rainha de Pohjola. Perto do final da jornada, Vainamoinen e
seus amigos precisam recuperar o Sampo, um objeto mágico roubado por Louhi.
Pesquisadores e historiadores dentro e fora da
Finlândia tentaram encontrar uma evidência real de Pohjola e Kalevala. A
possibilidade mais óbvia aponta ao passado longínquo da península escandinava,
anterior à chegada dos nórdicos e russos ao território da atual Finlândia.
Nessa época ocorriam muitos conflitos entre as antigas tribos finlandesas, como
os Tavastianos, Karélios, Ostrobônios e Savonianos, contra um povo chamado Sami,
que ainda hoje vive no extremo norte da Finlândia, Noruega e Suécia.
Embora não haja correlação
explícita entre os Sami e Pohjola no poema, diversos aspectos da terra
governada pela temível Louhi demonstram similaridade com a cultura desse povo,
como o xamanismo no dia a dia e a grande participação das mulheres no comando
das aldeias. Em algumas versões do poema, Louhi e suas inúmeras filhas são
descritas com a pele mais escura em comparação com os heróis do Kalevala, um
traço comum em algumas tribos Sami diante dos finlandeses do sul.
Apesar da forte rivalidade entre Kalevala e Pohjola,
alguns dos heróis do poema tentam se casar com filhas de Louhi, após superarem
desafios impostos pela rainha-bruxa. Provavelmente esse curioso detalhe é uma
referência ao estabelecimento da paz entre as tribos finlandesas e os Sami, por
meio de matrimônios.
8-A Imperatriz que inventou a Coxinha.
Terminaremos a presente lista com uma lenda deliciosa, envolvendo a Família Imperial Brasileira. Uma história popular afirma que a invenção da coxinha, o tradicional salgado recheado com frango desfiado, deve-se a ninguém menos que à Imperatriz Teresa Cristina, esposa do Imperador Pedro II do Brasil.
Tudo começou quando o Imperador e sua família se sentaram para jantar um frango assado, o prato predileto de todos eles. Um dos filhos de Pedro e Teresa sempre fazia questão de pegar as coxas da galinha antes dos irmãos (não se sabe qual era o herdeiro comedor de coxas), o que gerava desgosto no resto da família.
Um belo dia a Imperatriz Tereza decidiu que resolveria
o problema à própria maneira, desfiando uma galinha inteira e misturando com
farinha e ovo, criando um quitute que foi o maior sucesso na corte. Assim
surgiram as primeiras coxinhas, que até hoje possuem um lugar especial na
psique brasileira, e alcançaram sucesso no exterior, com uma contribuição dos
brasileiros que emigraram para outros países.
Não se sabe se Tereza Cristina
realmente inventou a coxinha, mas é inegável que o salgado existe desde a época
do Império do Brasil, e certos detalhes tornam plausível o papel da Imperatriz
no surgimento do quitute. Vinda do Reino das Duas Sicílias, Tereza Cristina era
uma legítima italiana, assumindo o comando da cozinha do palácio com
frequência, um detalhe que não passou despercebido pelos estrangeiros que
visitavam a corte.
É possível que a Imperatriz tivesse uma inspiração de
sua terra natal quando criou as coxinhas: Na Sicília existe um salgado chamado
Arancino, feito de arroz empanado e com diversos recheios, indo de queijo
mozarela, molho de tomate, cogumelos ou carne moída. Os Arancini (Arancino no
plural, conforme a grafia italiana) costumam ser feitos para se aproveitar o
que restou do risoto da refeição anterior.
Texto escrito por Mateus
Ernani Heinzmann Bülow.
Confira outras lendas:
Mateus é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), escritor e colunista do blog "Recanto da Escritora".
Mateus é o autor de dois livros de fantasia:
*Taquarê - Entre a Selva e o
Mar
*Taquarê - Entre um Império e
um Reino
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