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domingo, 6 de outubro de 2019

Juca Pirama – Marcado para Morrer – Análise.

   Olá, pessoal! Hoje a postagem foi escrita pelo meu amigo escritor Mateus Ernani Heinzmann Bulow que fez uma análise literária da história "Juca Pirama -- Marcado para morrer", obra de Eneias Tavares. 
    A postagem está bem interessante, pois é a análise de uma obra literária de um escritor nacional (Eneias Tavares) feita por outro escritor nacional, nosso colunista Mateus Bulow.  Uma das nossas metas é incentivar o crescimento da literatura nacional e de jovens autores. E uma análise crítica feita por outro escritor ganha mais credibilidade. 
  Aviso aos leitores: A análise está segura, equilibrada, e o autor da postagem foi cuidadoso para não revelar Spoilers. Entretanto, há suaves Spoilers distribuídos nos pontos positivos e alguns Spoilers curiosos nos pontos negativos. O objetivo do blogue é incentivar a literatura. Boa leitura! 


Juca Pirama – Marcado para Morrer – Análise.



         O que acontece quando um professor apaixonado por fantasia e ficção científica decide revisitar clássicos da literatura brasileira? A resposta se encontra na série Brasiliana Steampunk, inaugurada em 2014 com A Estranha Lição de Anatomia do Temível Doutor Louison. O autor dessa verdadeira saga é o santa-mariense Eneias Tavares, professor de literatura e pesquisador na UFSM.
         Em A Estranha Lição de Anatomia do Temível Doutor Louison, diversos personagens da literatura nacional se unem para enfrentar um assassino foragido, no longínquo ano de 1911. A ambientação envolve tecnologias fictícias como robôs a vapor, dirigíveis gigantes e outras máquinas típicas do gênero Steampunk (para saber mais a respeito, leia a lista dos Gêneros e Estéticas da Ficção Retrofuturista, do mesmo autor).
         A série Brasiliana Steampunk abrange um universo vasto, contando até mesmo com uma Websérie, chamada “A Todo Vapor”. Eu ainda sou um novato neste universo, e por isso decidi começar com um livro que serve de pré-sequência (história que antecede a trama principal, porém realizada mais tarde), conforme instrução do próprio Eneias. Esse livro será o objeto da crítica de hoje.
         Juca Pirama – Marcado para Morrer é uma história de investigação e aventura se passando no universo de Brasiliana Steampunk, porém focada em apenas um dos heróis, no ano de 1907. O protagonista é um lutador de rua famoso por suas habilidades com adagas e defensor das crianças pobres da cidade de São Paulo, dominada pelas novas (melhor dizendo, “velhas”) máquinas a vapor.
         Após surrar os capangas de um malfeitor que cobrava “proteção” dos comerciantes na cidade baixa, Juca Pirama é descoberto pelo escrivão José Silva e recebe trabalho como segurança de Cassandra e Cecília, as duas filhas (uma jovem mulher e uma criança, respectivamente) de um rico cafeicultor chamado Petrônio Gouvêa, desaparecido de sua própria casa em circunstâncias misteriosas. O herói se vê enredado em uma trama bizarra, envolvendo sociedades secretas, divindades ancestrais e até rituais de canibalismo!
         Esse é um resumo básico do livro e agora entraremos nas nuances do mesmo, falando dos personagens, do enredo e outros elementos. Entretanto, se eu tivesse de fazer uma análise geral, eu diria que a obra é boa no que se propõe e os personagens são interessantes, a despeito do enredo não se destacar muito. Sem mais delongas, embarque no Volksfuligem (um automóvel desse mundo fantástico), e vamos em frente!

Pontos positivos:



1-Prefácio de Felipe Reis.

         Logo nas primeiras páginas, encontramos um prefácio sob o título “Um Juca Pirama bem diferente do que vimos na Escola”, de autoria de Felipe Reis, o coautor desse livro ao lado de Eneias Tavares. Felipe Reis comenta sua primeira experiência na escola com o poema escrito por Gonçalves Dias; nas palavras dele, a leitura não foi muito proveitosa, em parte devido à inexperiência ou desinteresse.
         Apenas tardiamente Felipe descobriria a “magia” da obra, a tristeza e a força em seu conteúdo. Nas palavras do coautor, I-Juca Pirama soava quase como um “rap” do Século XIX, em seus versos ligeiros e nas cenas de ação. Seguindo com o prefácio, Felipe compara os “dois Jucas”, o de Gonçalves Dias e o da série Brasiliana Steampunk; enquanto o personagem original era um herói típico do romantismo, o protagonista do livro é um personagem feliz, apesar de sofrido, como todo herói brasileiro.
         Aproveitando o gancho dado pelo prefácio, falarei de minha própria experiência inicial com Juca Pirama: Apesar de gostar do poema, bem como da mensagem de sufocar o orgulho e defender a própria honra, confesso que não era a minha obra preferida na temática indianista do romantismo. Sempre gostei mais de O Guarani e Ubirajara, ambas de autoria do escritor cearense José de Alencar.

2-Versos em Paródia.


          

         

     Cada capítulo de Juca Pirama – Marcado para Morrer é iniciado com versos baseados no poema original, escritos com letras brancas sobre um fundo preto. Sem dúvida é uma excelente homenagem à obra de Gonçalves Dias, além de acentuar a inesperada semelhança entre as duas selvas: tanto a mata dominada pelos Aimorés (os vilões do poema original) como a paisagem urbana da São Paulo Steampunk no livro são territórios a serem desbravados apenas pelos mais valentes.

         Vamos fazer um comparativo entre os primeiros trechos do poema, e a respectiva paródia feita por Eneias Tavares:

No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos – cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas cortes,
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudes, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!

         Agora, o correspondente escrito pelo autor do livro:

No meio dos arcos de muitos produtos,
Cercados de sacas, cobertos de custos,
Alteiam-se os gritos da servil nação,
São homens, mulheres, crianças e fortes,
Fracos na guerra e amigos do esporte,
Que olham a briga querendo explosão!

São rudes, sinceros, famintos de pão,
Que gritam injúrias de baixo calão!
São paulistas de almas contentes,
Infantes que avivam o brio do cantor,
Arfando seu nome a todas as gentes,
Num mar de prodígios, de glória e terror!

3-A história já começa com uma boa briga!

         A frase inicial da história é “vai lá, Juca Pirama! Acaba com eles!”, dita por um dos meninos de rua, enquanto o protagonista enfrenta os capangas de um criminoso chamado Tonico Porcaria (sim, este é o nome dele). Outrora um simples trabalhador braçal e recém-chegado na região, Juca Pirama decide tomar as dores de quem sofre a exploração de Tonico, dando seu “comitê de boas vindas”.
         É impossível não se lembrar dos tutoriais de videogames nesse trecho. É como se controlássemos Juca Pirama com o joystick ou o teclado, aprendendo os golpes e as manobras evasivas, enquanto o personagem puxa a “sabedoria popular” entre um soco e um chute. Outra cena a surgir na memória ao ler esse trecho é o Aladdin fugindo dos guardas da cidade de Agrabah, após roubar um pão e dá-lo aos meninos de rua.
         O bom humor do protagonista também é revelado durante e após a briga, ao fazer piadas com a altura do Tonico Porcaria: “Difícil estar por baixo, não é mesmo, Seu Tonico? Enfrentar pessoas do seu tamanho é um grande desafio!”. Após resolver o enleio, Juca solta outro de seus trocadilhos: “Enquanto a gentalha jura vingança, a gente dança!”.

4-O Protagonista Marcado para Morrer.

         Como vocês devem ter percebido no ponto anterior, um dos elementos que eu mais gostei neste livro foi o herói. Malandro, esforçado, piadista e pau para toda obra, Juca Pirama é uma combinação única de agressividade e sensibilidade, um homem vingativo e amargurado, porém capaz de atos de extrema bondade. Apesar de simples nos hábitos, Juca Pirama é ligeiro no raciocínio e possui um instinto de sobrevivência aguçado.
         Um dos trechos que evidencia o caráter do protagonista ocorre ainda no primeiro capítulo, quando Juca recebe um adiantamento (um “faz-me-rir”, nas palavras dele) de José Silva, e vai comprar roupas em uma alfaiataria na qual prestou serviços, porém foi desprezado pelo dono do local. Segue-se esse trecho, onde Juca descreve as roupas que gostaria de adquirir, sob o olhar espantado do proprietário:
         “Quero roupas bonitas e escuras, como homens de classe costumam usar. Mas nada de gravatas, que não sou desses. Antes, quero roupas possíveis de usar em respeitáveis ambientes de trabalho durante o dia e em pouco recomendáveis casas noturnas, se é que o senhor me entende!”
         Mesmo sob as espessas camadas de bom humor é possível notar uma carga emocional pesada no herói, reflexo de sua condição de mestiço, com pai branco e mãe índia, bem como da culpa por ser o único sobrevivente de um incêndio no orfanato onde viveu. Nesse mesmo local ele desenvolveria o gosto pela leitura, e este apreço pelos livros ressurgiria ao visitar a biblioteca da família Gouvêa, ciente que “uma biblioteca revela a alma de seu dono”.
         A fúria fervente de Juca Pirama também lhe serve de arma em diversas ocasiões, ao lado das inúmeras adagas que carrega consigo. Essa mesma fúria desperta a magia inerente a Juca, durante a fuga da prisão; tal magia consistia em uma enorme bola de fogo explosiva, alimentada dentro do coração dele por sentimentos contraditórios, como amor, desejo, desprezo, raiva, tristeza e carinho.

5-Juca levando Cecília para conhecer São Paulo.

                  

         Lá pelo meio do livro ocorre um “atentado terrorista” na sede da empresa da família Gouvêa, um evento da qual Juca e Cassandra se escapam por pouco. Cecília vai visitar os dois no hospital, e a mais velha das irmãs Gouvêa ordena Juca a levar a menina de volta por motivos de segurança. O protagonista, entretanto, tem uma ideia diferente no caminho, e decide apresentar a cidade de São Paulo a Cecília antes de retornar.
         As cenas que se seguem os retratam indo de um lado a outro, conhecendo diversos espaços públicos e históricos da Pauliceia, como a Estação da Luz, a Pinacoteca e o Mercado Velho. Após caminharem uma boa distância pelas periferias da cidade, Cecília pergunta a Juca sobre como é viver nesse lugar, e recebe a seguinte resposta:
         “É como viver em um coração pulsante. Às vezes ele acelera, às vezes ele acalma. Em alguns dias, é amor o que você respira. Em outros, puro ódio ou simples enfado, cansaço mesmo. Em algumas noites, há canções que fazem rir e dançar. Em outras, há tragédias que o fazem chorar”.
         Em contrapartida, Juca pergunta para a mais nova das irmãs Gouvêa como é viver na mansão, e a menina faz o seguinte desabafo:
         “É frio. Apenas frio. Digo, a riqueza é boa e eu seria hipócrita se dissesse algo diferente. Mas é como ter um passarinho. Você precisa cuidar, dar comida, vigiar para os gatos não chegarem perto. Agora, multiplique isso por mil passarinhos. Se você não tomar cuidado, só vive para cuidar deles. É assim como meu pai vivia e é como Cassandra vive”.
         Inspirado pela frase da menina, Juca convida Cecília a soltar alguns passarinhos. Eles compram gaiolas com passarinhos e vão à beira do rio; para a surpresa de Cecília, os bichinhos hesitam em sair de seu confinamento, ao que Juca explica: “Ficam tanto tempo aprisionados, que quando a liberdade lhes é dada, levam tempo a aceitá-la”. A dupla abriu todas as gaiolas, e foi preciso um passarinho valente sair antes para os outros seguirem seu exemplo.
         Esse momento tranquilo de Juca e Cecília, entretanto, logo seria cortado por uma triste notícia: O herói descobre que um dos meninos do porto foi afogado pelos capangas do Tonico Porcaria. Enfurecido, ele parte para tirar satisfações e se dá mal na briga subsequente, indo para a cadeia logo em seguida.

6-O Capitão Mello Bandeira.

         A aparição inicial de Mello Bandeira ocorre em uma lembrança do protagonista, em sua primeira passagem pela prisão. O capitão vindo do Rio de Janeiro era incumbido da carceragem e conhecido por sua atitude inflexível, porém não demorou a virar amigo de Juca Pirama, ao ponto de jogarem xadrez. Mello Bandeira ensinou outra lição importante ao herói: “Matar não é o desafio, e sim esconder o corpo”.
         O segundo encontro entre Mello Bandeira e Juca Pirama, como os leitores podem imaginar, ocorreu em circunstâncias bem parecidas. O protagonista até avisa Cassandra que tentar subornar Mello Bandeira é inútil, pois nunca vira alguém com o caráter dele. Nem mesmo um dos vilões consegue subornar o oficial de polícia, a despeito de levantar essa suspeita em Juca Pirama.
         Uma das razões para Mello Bandeira e Juca Pirama se tornarem amigos se deve a certa inveja por parte do sisudo oficial, na forma como o protagonista leva a vida. Para Mello Bandeira, que não possuía amigos ou parentes em São Paulo, a companhia do rapaz era um bom passatempo. Ambos também detestam opulência e frivolidades, embora por razões diferentes: Enquanto Juca associa esse comportamento aos criminosos de colarinho branco, Mello Bandeira aprendeu a ser austero e a evitar o luxo.
         Os dois também se aproximam na determinação em não deixar o mal triunfar sobre a vida. Na prática, o investigador age como um deuteragonista (protagonista secundário) na história de Juca Pirama – Marcado para Morrer, embora prefira um método mais discreto em comparação com a fúria selvagem do protagonista.

7-Crítica sutil ao feminismo radical.

         

         A crítica ocorre durante um trecho curto, porém digno de nota, onde o protagonista expõe a hipocrisia de uma personagem, outrora tão determinada em provar a igualdade entre homens e mulheres nos negócios. Ao descobrir a aliança desta personagem (cujo nome não será dito aqui, para evitar revelações no enredo) com os homens que ela mais despreza em São Paulo, Juca questiona o que surgirá desse acordo.
         A discussão continua com a personagem afirmando que não conseguirá mudar o que considera errado apenas por seus próprios recursos, justificando a cumplicidade. Aturdido com a resposta, Juca Pirama mais uma vez tenta apelar à razão, afirmando que manter uma aliança com homens tão cruéis apenas resultaria em mais sofrimento para ela e também para tudo o que acredita. A manobra chega a levantar algumas dúvidas na vilã, porém não atinge sucesso em demovê-la de seus intentos.

8-Presença do poema original de Gonçalves Dias nos trechos finais, ao lado de uma análise.

         Após o final do livro, somos apresentados a uma análise da obra original feita por Eneias Tavares, apontando seu significado na época em que foi concebida. Como a maior parte dos estudantes já está cansada de saber, Gonçalves Dias trouxe os indígenas à literatura nacional não como “bons selvagens” ou bárbaros, e sim como personagens de seu tempo, apesar de ainda retratá-los com certa dose de idealismo.
         Nesse trecho de seis páginas, Eneias Tavares comenta alguns projetos de Gonçalves Dias para a educação brasileira, bem como o encontro deste poeta com outras figuras do Romantismo, durante sua passagem pela Universidade de Coimbra. O autor ainda aproveita para soltar uma indireta, apontando a “ditadura machadiana” pós-romântica, aliada ao baixo nível de patriotismo na sociedade brasileira.
         Com a análise crítica/histórica devidamente realizada, encontramos o poema original logo em seguida, com todos os dez versos. Apesar de ser mais fácil encontrar I-Juca Pirama em PDF na internet, confesso que ver a obra no finalzinho foi muito nostálgico, pois sempre gostei de estudar o período do Romantismo nas aulas de Literatura.

Sinal Amarelo: Referência obscura ao autor Willian Blake.





         Além da obra original de Gonçalves Dias, Juca Pirama – Marcado para Morrer possui referências a um poeta, pintor e impressor britânico, chamado Willian Blake. Esse autor não obteve fama em vida, a despeito de hoje ser valorizado no movimento romântico da passagem do Século XVIII para o Século XIX; entretanto, ele continua pouco conhecido fora dos países de língua inglesa.
         Considero a citação a Willian Blake uma verdadeira “faca de dois gumes” para a obra: Por um lado, é interessante trazer algo a mais na concepção de um livro que se propõe a homenagear um trabalho anterior importante na literatura brasileira. Por outro lado, colocar mais referências, dando-lhes peso na resolução do conflito da trama, pode gerar alguma confusão para leitores desacostumados.
         Talvez eu esteja subestimando a capacidade de compreensão dos leitores (algo que eu particularmente detesto fazer quando escrevo). Entretanto, a natureza da mitologia fantástica criada por Willian Blake não ajuda muito, por tratar de assuntos complexos como o conflito entre a Razão e a Imaginação. Blake era um crítico ferrenho do Racionalismo e do Cientificismo surgidos no Iluminismo, e em um trecho da primeira metade do livro, Cecília chega a afirmar que “Blake não é poesia, é Bizarrice”.
         O principal “deus” criado por Blake chama-se Urizen, cujo nome é um anagrama de “Your Reason” (“Sua Razão”) e “Horizon” (“Horizonte”), sendo adorado pela Maçonaria nesse universo fictício como personificação do raciocínio e da lógica. Urizen é retratado como um homem idoso barbado, sempre com um grande compasso em mãos, com o qual ele molda a existência e todas as suas normas naturais e morais. Para Blake, Urizen era criador e também um prisioneiro das regras imutáveis.

Pontos negativos:



1-Tirem as crianças da sala!

         Vou bancar o moralista aqui, e sinceramente não me importo. Se existe algo que me chamou a atenção de forma negativa foram as muitas cenas fazendo alusão a sexo, ou então retratando o ato sexual de forma grotesca e selvagem. Nem mesmo o trecho de Juca apresentando São Paulo à Cecília está livre da baixaria, pois logo no início da viagem aparecem prostitutas interpelando o protagonista.
         Começaremos com a própria família Gouvêa, cujo patriarca desaparecido criou um método “peculiar” para firmar negócios com outros empresários de São Paulo, oferecendo sua filha mais velha a eles. E por “oferecer” a filha, eu falo em prostituição, mesmo. Como se não bastasse o absurdo da situação, a própria moça se defende afirmando que “estamos no Século Vinte, e hoje uma mulher faz com seu sexo o que bem lhe aprouver”.
         Outra cena de embrulhar o estômago envolve uma conversa entre Juca e uma das matronas da residência dos Gouvêa, alertando-o para não tentar seduzir Cecília. Como seria de se esperar, o protagonista fica enojado em imaginar alguém cometendo essa atrocidade com uma menina adoentada de catorze anos, porém simpatizou com as palavras da matrona, ciente que “tais canalhices tinham virado regra”.
         Logo no início do capítulo IV ocorre uma cena de sexo explícito, verdadeiro “momento vergonha alheia”. Trata-se de um parágrafo de catorze linhas, cheio de analogias nada sutis. Eu tive que interromper a leitura por alguns minutos após ler aquele trecho, pois não conseguia parar de rir, ainda mais ao imaginar o autor escrevendo aquilo com orgulho. Juca Pirama – Marcado para Morrer possui diversos méritos, mas essa cena passa longe deles.

2-A Noite dos Maçons Canibais.

         O trecho final de Juca Pirama – Marcado para Morrer é uma loucura total. Após fugir da cadeia e se esconder nas ruínas do orfanato onde passou a infância, Juca retorna à mansão Gouvêa, a fim de evitar que as duas irmãs sejam sacrificadas em um “Ritual de Sangue”, envolvendo maçons mascarados. Para seu azar, Juca descobre que o plano da maçonaria era acabar com ele, e não as irmãs.
         Peço ao leitor que releia o parágrafo acima, com calma e paciência. Difícil fazê-lo sem esboçar um leve sorriso, não é mesmo? E fica ainda pior (pelos motivos errados): Eles são canibais. E uma das líderes do grupelho aparece vestida de Cleópatra. A situação apresentada no clímax é tão ridícula que parece saída daqueles filmes de terror bizarros e violentos feitos por cineastas italianos entre as décadas de 1960 e 1970.
         É verdade que o ritual faz referência ao poema original, pois os maçons queriam absorver a coragem e a força do herói. Entretanto, a obra de Gonçalves Dias retratava um guerreiro Tupi lutando contra uma tribo de Aimorés. O livro escrito por Eneias Tavares, por sua vez, mostra um caboclo disfarçado com um uniforme de polícia roubado durante a fuga da cadeia e distribuindo facadas em maçons mascarados (muitos deles idosos), liderados por uma mulher vestida de Cleópatra.
         Não existe forma alguma de levar esse último embate a sério, mesmo com a forte carga emocional revelada perto do final. Ao ler esse trecho, eu me imaginei ouvindo a música “Metrô Linha 743”, do eterno Raul Seixas; essa música conta a história de um sujeito que é capturado por canibais comedores de cérebro, e seu clima estranho combina perfeitamente com a cena de Juca Pirama – Marcado para Morrer.





E bem, e o Resto?

         Em suas 157 páginas de história, Juca Pirama – Marcado para Morrer consegue divertir e chocar o leitor, apresentando um personagem carismático e fácil de simpatizar, em uma trama que não é lá grande coisa. Na verdade, nota-se que o principal objetivo da obra é servir de porta de entrada para o vasto universo de Brasiliana Steampunk.
         Descontando as cenas de baixaria e os vilões exagerados e estereotipados, a história é um excelente passatempo, capaz de ser lido em pouco menos de duas horas. Apenas sugiro fazê-lo no conforto de seu lar, evitando ler em público; assim você evitará assustar alguém com suas gargalhadas, cortesia das tiradas do herói ou das cenas mais estranhas.

Nota final: 08/10.

Texto escrito por Mateus Ernani Heinzmann Bulow. 

*Mateus, o autor desse texto de crítica literária, é gaúcho da cidade de Santa Maria/RS, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), escritor e poeta. Mateus tem dois livros publicados: "Taquarê - Entre a Selva e o Mar" e "Taquarê - Entre um Império e um Reino." 

*Imagens dos livros do nosso colunista Mateus (autor de postagens com análises literárias e textos históricos): 





*Link do primeiro livro do Mateus no Skoob:


*Confira todas as postagens da coluna do Mateus no blogue:


*Sobre os livros do Mateus:




*Se você gostou da análise literária de Mateus, confira outra análise literária dele:

*Duncan Garibaldi e a Ordem dos Bandeirantes de André Zanki Cordenonsi -- Análise de Mateus. 



segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos – Análise.


   
                                       


   Olá, pessoal! Hoje a postagem será a respeito do Livro "Vera Cruz -- Sonhos e Pesadelos", o qual foi analisado pelo escritor gaúcho Mateus Ernani Heinzmann Bulow. O livro citado foi escrito por Gabriel Billy Castilho e está inserido na estética Steampunk
  Salienta-se que toda análise cuidadosa e bem-intencionada de uma obra literária vale a pena (especialmente quando é escrita por alguém que entende de literatura) ainda que tenha críticas. A observação das virtudes de uma obra incentiva a construção da literatura fictícia tanto quanto o apontamento das críticas.
    Vale ressaltar que as críticas expostas almejam auxiliar os escritores de ficção na construção de um enredo mais harmônico e consistente. Muitas vezes, as críticas ajudam mais na construção literária do que os elogios, pois apontam erros que podem ser lapidados pelos autores e conscientizam os escritores a respeito de aspectos antes despercebidos. Além do mais, as críticas constroem a "fama" de muitos livros e despertam muito mais a curiosidade de leitores e escritores. Boa leitura! 


Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos – Análise.



Imagine se a história do Brasil fosse um universo mágico, repleto de nações e povoado por figuras do folclore nacional, nossos inventores esquecidos, personalidades da família imperial, bandeirantes, revolucionários, artistas, e mais alguns nomes que você irá reconhecer (e outros de quem talvez nunca tenha ouvido falar). Imagine um mundo fervilhante, onde as incríveis tecnologias que nasceram no Brasil – aviões, dirigíveis, rádio – convivem com a mágica do axé e das pajelanças, e nossos mitos de raiz abrem as portas para a glória ou a danação desse mundo-Brasil chamado Vera Cruz.

É nesse mundo que o ladrão Pedro Malazarte se lança à busca de Ivi Marã Ei, a Terra Sem Males, para encontrar o mais poderoso objeto que existe, a Borduna de Jurupari. A essa jornada repleta de desafios se unirão as figuras mais diversas, como a princesa quilombola Zaila, o índio amaldiçoado Urutau, o inventor frustrado Júlio César Ribeiro, a princesa destronada Isabel de Bragança, o curupira Oiti, e muitos outros personagens apaixonantes.

Esta é uma viagem sem volta. Bem-vindos a Vera Cruz!

        Esta é a contracapa do livro da análise de hoje, escrito por Gabriel “Billy” Castilho, e devo dizer que me surpreendi ao vê-lo em uma estante, durante um evento Nerd na Cesma, a Cooperativa de Estudantes de Santa Maria. Consegui lê-lo em apenas um domingo de novembro, entre duas e quatro da tarde, e me surpreendi com vários aspectos da história, tanto para o bem como para o mal.
        Como dito na contracapa, Vera Cruz trata-se de uma terra fictícia, porém baseada na mitologia brasileira, e a trama principal envolve a busca de um artefato místico, capaz de alterar o destino desse mundo fantástico. À primeira vista, parece que estamos diante de algo realmente inovador, não é verdade? Bem... Sim e não. Embora o esforço seja louvável, existem numerosas fraquezas na condução da história.
        Se eu tivesse de resumir os principais problemas de Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos, eu usaria duas palavras: personagens e estruturação. Parece pouco, mas estes dois pontos cruciais levam a um número ainda maior de fraquezas, dentro e fora da história. Confesso que eu esperava mais do livro, até porque também escrevo sobre história e mitologia brasileira, e hesitei muito ao fazer uma análise, pois os pontos negativos superariam os positivos em número. No entanto, creio que podemos aprender tanto com as virtudes como as falhas de um livro, e isto me incentivou a ir em frente.
        Com isso em mente, convido os leitores a subirem no dirigível, e se prepararem para a viagem, que certamente será turbulenta. E caso o autor do livro ponha os olhos nessa análise, por alguma travessura do destino, peço que ele não leve as críticas para o lado pessoal, até porque também cometi meus erros na atividade da escrita, e o universo fictício que ele tem em mãos é digno de continuar a ser explorado, mesmo se o pontapé inicial não for o melhor. Sem mais delongas, chegou o momento de alçar voo!

***Pontos positivos:

1-Um Brasil que não é o Brasil.



        O universo de Vera Cruz, como dito antes, é baseado na mitologia nacional, porém possui influências históricas reais. Inventores brasileiros são referenciados em diversas cenas, tais como o frade e balonista (pessoa especializada em lidar com balões) Bartolomeu de Gusmão, o aviador Santos Dumont, e o padre gaúcho Roberto Landell de Moura, pioneiro no uso da radiodifusão.
        Gabriel Billy classificou seu livro como Steampunk (para saber mais, veja a lista dos Gêneros e Estéticas da Ficção Retrofuturista, também disponível nesse blog). No entanto, suas máquinas fantásticas, que vão de braços mecânicos a tanques de guerra, dirigíveis, aeronaves e até robôs gigantes, não são movidas a carvão: o combustível descrito no livro trata-se de um composto de álcool de cana, chamado Bottene. O nome é uma referência a João de Bottene, um pioneiro no uso de combustíveis alternativos no Brasil.
        Existem diversas nações em Vera Cruz, mas as mais dignas de nota e relevantes para o enredo são Lisarb (“Brasil” ao contrário) e Ouro Preto. Lisarb é descrita como uma monarquia convertida em ditadura militar, com diversos avanços tecnológicos e máquinas de guerra movidas a Bottene. Ouro Preto, por sua vez, é um reino fundado por ex-escravos de Lisarb, alforriados e fugidos, e sua força se baseia em magia e em criaturas mágicas.
        Vendo esse arranjo, é difícil não pensar em um pequeno “furo” de enredo (você sabe que a coisa está feia quando encontra falhas nos pontos positivos...): com tantas máquinas à disposição, como é possível Lisarb depender tanto de mão de obra escrava? É verdade que os escravos trabalham nas lavouras de cana utilizadas para produzir Bottene, e que a manutenção da escravidão se deveu a um arranjo político; mas e seria difícil criar máquinas especializadas em colheita de cana, parecidas com as utilizadas nas lavouras modernas?

2-Descrições de monstros, personagens, máquinas e batalhas.



        Se existe um ponto em que o livro se esmera são as descrições, todas curtas, porém pontuais e diretas. Esse é um aspecto importante na literatura fantástica, justamente por tratar com frequência de acontecimentos fora do dia a dia habitual do leitor; dessa forma, uma apresentação descritiva se faz necessária.
        Coisas além da nossa compreensão não faltam em Vera Cruz, e nada menos que cinco desenhistas ajudaram a trazer o mundo fantástico à tona. Eles são: Rebeca Acco, Zakuro Aoyoama, Theo Szczpanski, Rogério Narciso e Dilcênio Rangel. No entanto, as ilustrações não estão assinadas, o que torna difícil identificar os autores; uma pena, pois a diferença de traço é notável em muitas delas.
        As cenas de batalha são curtas, porém frenéticas e numerosas; durante as sequências de ação, diversos acontecimentos estranhos ajudam a torná-las mais originais. Emboscadas, ataques de monstros e robôs, lutas entre dirigíveis e magias estranhas tornam as jornadas dos personagens bem movimentadas.

3-Financiamento via Catarse.



        Para publicar o livro, Gabriel Billy usou essa plataforma de crowdfunding, que permite financiamento coletivo. Para muitos autores iniciantes, que não possuem métodos de divulgação e capital necessário, o crowdfunding é uma alternativa excelente, até porque o autor conta com liberdade maior para publicar o que achar melhor, sem intervenção direta das editoras.
        Nas últimas páginas de Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos, o autor fez uma dedicatória a todos os colaboradores da campanha nessa plataforma. São nada menos que duas páginas de nomes, entre amigos e desconhecidos. Devo dizer que apesar de se tratar de um aspecto mais técnico da publicação, é interessante ver o sincero agradecimento do autor pelos amigos que o ajudaram, muitos deles companheiros de bandas na qual ele tocou, e ex-professores.

***Pontos negativos:

1-Tem um Livro no meio da Explicação...


        Eu peço desculpas pela brincadeira, mas é a melhor explicação possível para o que considero o principal problema de Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos, e responsável direto por todos os outros problemas a serem listados aqui. Resumidamente, metade do livro é a trama, enquanto o restante trata de informações avulsas sobre o universo fictício, agradecimentos (merecidos, é verdade) e ilustrações.
        A presença dessas explicações e aspectos avulsos à história não é exatamente um problema, porém algo está terrivelmente errado quando ela ocupa literalmente a metade do livro. Duvidam do que falo? Pois bem... Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos possui 184 páginas, algo razoável para uma história de fantasia. Mas a parte da trama em si (ou seja, o que deveria ser o foco principal), se estende da página 13 até 109. Sentiu o tamanho do drama?
        Provavelmente vocês estão se perguntando o que existe nas páginas anteriores à de número 13, quando o livro finalmente começa. Começamos com um mapa de Vera Cruz, seguido de um agradecimento em avulso a um conhecido do autor, pelo imenso apoio dado; logo após, aparece um prefácio feito por outro autor brasileiro, chamado Anderson Assis, criador de uma trilogia chamada Pré-Mortais.
        Respire fundo, que ainda não acabou: após o prefácio, temos um pequeno parágrafo sobre Vera Cruz, explicando que este livro “não é a fantasia habitual dos elfos e dragões” (achei que já estava bem claro na contracapa...); logo após, aparece uma dedicatória a todos os historiadores, folcloristas e biógrafos que mantém nossa história viva; em seguida, surgem duas páginas com agradecimentos a desenhistas, editores e parentes; por último, aparece um prelúdio, onde somos apresentados ao universo de Vera Cruz, bem como suas nações mais importantes: Lisarb e Ouro Preto. E depois dessa cena, nossa história começa.
        Talvez eu esteja avaliando de forma muito dura, até porque esses trechos anteriores à trama principal não são longos, se estendendo entre uma ou duas páginas. No entanto, seria possível cortar boa parte do que aparece nesses “créditos iniciais”, a fim de começar de uma vez a história. Sabe aquela sensação tediosa quando o filme enrola para começar no cinema, por causa dos patrocinadores (algo frequente em filmes brasileiros)? Mais ou menos isso...

2-Excesso de Personagens.



        Seguindo a ordem do livro, vamos tratar do enredo e dos personagens, cujo número é considerável para uma obra curta. Como a história é contada de forma fragmentada, pode se fazer uma comparação com novelas de TV e seus “núcleos” de personagens, muitas vezes sem interações diretas e apenas se encontrando no final.
        O número de personagens em uma obra não é um indicador de qualidade ou de falta dela, mas em tramas não muito longas (96 páginas, nesse caso) isso se converte em problema, por dificultar o desenvolvimento integral de todos eles, com pouco material disponível. Como resultado, a maior parte deles soa genérica ou clichê. Isso em um livro que busca se apresentar como inovador.
        Temos o protagonista fora-da-lei com coração bom, porém é orgulhoso demais para admitir isso; uma princesa guerreira furiosa que é orgulhosa demais para admitir que no fundo gosta do protagonista; o casal de amantes que teme ficar afastado, devido a uma guerra entre seus respectivos povos; uma princesa exilada após um golpe militar, acompanhada por um guarda costas com a personalidade de uma porta; um capanga ciborgue que apenas cumpre ordens do antagonista... Clichês não são necessariamente ruins, mas eles se tornam problemas quando não há espaço para desenvolvimento dos personagens.
        Apenas dois personagens se escapam. O primeiro é o índio Urutau, detentor do arco lunar e de um espírito-pássaro, parecido com a maldição do lobisomem; o personagem é retratado como um nativo rebelde, com problemas ao beber em excesso, e se culpa pelas falhas em sua trajetória como sucessor do pajé. O segundo personagem é Kaput, o ditador de Lisarb: o personagem é um antagonista frio e pragmático, mas carrega a dor trazida pelo senso de dever, ciente dos sacrifícios pessoais realizados em nome da sobrevivência de seu país, ameaçado justamente por alguém que carrega seu sangue.

3-Três em Um.




        Com o ritmo acelerado, Vera Cruz – Sonhos e pesadelos parece literalmente conter uma trilogia em um espaço curto demais para uma trama longa, e essa sensação é amplificada pelos numerosos núcleos de personagens, entre heróis e vilões. A impressão dada é que o livro literalmente entrou em “modo turbo”, sem espaço para nuances e interações mais profundas entre os acontecimentos.
        Ironicamente, essa rapidez dos heróis ao alcançarem a terra de Ivi Marã Ei se reverte em um curioso efeito positivo, na forma de uma reviravolta interessante perto do final. Não apenas o perigo oculto na “Terra sem Males” é revelado, como uma ameaça externa, disposta a conquistar Vera Cruz.

4-Entrevista da Vergonha Alheia.



        Depois do epílogo, temos mais uma leva de informações, iniciada com um posfácio, e eu serei sincero aqui: eu senti vergonha pelo autor nessa etapa. O posfácio vai das páginas 111 até 116, e funciona como uma espécie de “entrevista” informal, onde o autor revela suas inspirações para escrever fantasia, de como a ideia surgiu, e o que ele espera para a literatura fantástica brasileira no futuro.
        Não vejo nada errado em um autor expor suas inspirações e aspirações, até porque toda obra possui uma marca pessoal; no entanto, creio que a obra em si não é o melhor lugar para fazê-lo, e sim em um blog ou página pessoal. E eu não usei o termo “informal” de forma avulsa aqui, pois o posfácio é literalmente retratado como uma conversa de bar. Os parágrafos iniciais estão logo abaixo:

        “Bom, se você chegou até aqui, é porque leu a história toda! Sente-se, vamos beber para comemorar! Essa taverna é ótima, repleta de cachaça de qualidade. Cachaça mineira, sabe? De bons alambiques! Se não bebe cachaça, peço um suco de manga pra você. Tá na época de manga, tem tido em abundância, lá em casa mesmo a mangueira tá abarrotada”.

        “Garçom! Vê uma cachaça pra mim, e vê o que elx quiser. Escolhe aí o que você quer beber”.

        “Aqui, espero de verdade que tenha gostado do livro e tenha vontade de ler a continuação. Este é um projeto que trato com muito carinho, pois tive muito entusiasmo e pouca facilidade para executá-lo”.

        “Vou te contar como surgiu toda essa ideia maluca!”

        A “entrevista” em si não é um problema, e alguns aspectos trazidos por ela são bem interessantes. Tenho minhas dúvidas se o problema da fantasia nacional se deve à dificuldade de divulgação, ou à complexidade do nosso folclore (só o folclore indígena para dar um exemplo, envolve muita pesquisa), como apontados por Gabriel Billy. No entanto, é evidente que tanto o lugar como a forma dessa “entrevista”, bem no meio do livro, acaba destoando até mesmo em comparação com outros conteúdos adicionais.
        Como se não bastasse a intrusão desse trecho, o autor ainda interrompe a conversa, duas vezes, para elogiar uma cachaça de banana e chamar o garçom. Não, eu não estou brincando, ele realmente faz isso! No fim da “entrevista”, o autor ainda faz uma citação a Glauber Rocha, um cineasta brasileiro conhecido por Deus e o Diabo na Terra do Sol, entre outras obras, antes de pedir a conta...

5-Informações Extras Desnecessárias.


        Após a “entrevista”, somos levados a mais uma leva de informações, começando com um guia dos personagens, acompanhados de ilustrações e suas respectivas inspirações históricas, mitológicas e literárias. Logo após essas fichas de personagens, aparece um “relatório de missão” feito por um espião vindo de terras distantes de Vera Cruz, que é basicamente um resumo das nações e criaturas do mundo fantástico, com direito até mesmo a ilustrações de um “barco vivo” que sequer aparece na trama principal.
        Continuando as páginas restantes, aparece uma lista de referências históricas e mitológicas usadas para descrever diversos lugares e episódios ocorridos na trama principal; depois, temos a galeria de ilustrações de monstros e máquinas; finalmente, encerramos o livro com a lista de apoiadores no Catarse. Respire fundo antes de continuar, leitor; você necessita de uma pausa, antes do trecho final dessa análise.
        Vendo o número de informações extras em Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos, torna-se impossível não se lembrar de um pequeno trecho no final do livro Duncan Garibaldi e a Ordem dos Bandeirantes, de André Zanki Cordenonsi, do qual já falei neste blog. O trecho em questão é uma série de referências historiográficas, falando de quais aspectos de Santa Maria, cenário da trama, são reais ou não, e possui sete páginas em um livro de 229. Cordenonsi também não fez fichas catalográficas dos personagens ou dos Ghouls, Olharapins, Tartaranhos e Golens, algumas das criaturas que aparecem em seu livro, e que sequer fazem parte da mitologia brasileira, e sim dos folclores árabe e português.
        Sejamos honestos: informações avulsas nem sempre são necessárias, por maior que seja sua relevância na história a ser contada. Não há nada de errado em tentar localizar o leitor no universo ficcional, e orientá-lo em sua jornada. Porém, arremessar tantas informações equivale a ofender deliberadamente a inteligência do leitor, bem como sua capacidade de discernimento.

E bem, e o Resto?

        Com todos os aspectos positivos e negativos, Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos não é um livro de leitura difícil, porém é evidente que ele sofre de um problema comum na literatura fantástica, muitas vezes relacionado com a insegurança do autor (aqui eu falo por experiência própria): se preocupar muito em ser compreendido, em detrimento das descobertas a serem realizadas pelo próprio leitor ao folhear as páginas.
        Esse provavelmente não será o último livro de fantasia a sofrer desse mal, porém não me lembro de uma obra com esse nível de detalhamento alheio à trama principal. A trama em si não é ruim, embora sofra muito com a quebra de ritmo nas passagens de um núcleo de personagens a outro, e estes serem genéricos e pouco interessantes.
        Se eu tivesse de recomendar Vera Cruz – Sonhos e Pesadelos para alguém, eu o faria para dois grupos de pessoas: estudiosos da cultura e da história do Brasil e jogadores habituais de RPG, interessados em explorar outros mundos fantásticos, diferentes das tradicionais obras baseadas na Era Medieval.

Nota geral: 04/10.

 Texto escrito por Mateus Ernani Heinzmann Bulow. 


Capa do Livro de Mateus 


*Mateus, o escritor dessa postagem, é gaúcho, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), escritor, poeta e autor do Livro "Taquarê -- Entre a Selva e o Mar." 

*Link para adquirir o Livro do Mateus:


*Texto recomendado para entender melhor esta postagem:

"Gêneros e Estéticas da Ficção e da Fantasia Retro Futurista."


*Confira também a Análise do Livro "Duncan Garibaldi e a Ordem dos Bandeirantes" de André Zanki Cordenonsi:

http://tatycasarino.blogspot.com/2016/12/duncan-garibaldi-e-ordem-dos.html