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domingo, 6 de outubro de 2019

Juca Pirama – Marcado para Morrer – Análise.

   Olá, pessoal! Hoje a postagem foi escrita pelo meu amigo escritor Mateus Ernani Heinzmann Bulow que fez uma análise literária da história "Juca Pirama -- Marcado para morrer", obra de Eneias Tavares. 
    A postagem está bem interessante, pois é a análise de uma obra literária de um escritor nacional (Eneias Tavares) feita por outro escritor nacional, nosso colunista Mateus Bulow.  Uma das nossas metas é incentivar o crescimento da literatura nacional e de jovens autores. E uma análise crítica feita por outro escritor ganha mais credibilidade. 
  Aviso aos leitores: A análise está segura, equilibrada, e o autor da postagem foi cuidadoso para não revelar Spoilers. Entretanto, há suaves Spoilers distribuídos nos pontos positivos e alguns Spoilers curiosos nos pontos negativos. O objetivo do blogue é incentivar a literatura. Boa leitura! 


Juca Pirama – Marcado para Morrer – Análise.



         O que acontece quando um professor apaixonado por fantasia e ficção científica decide revisitar clássicos da literatura brasileira? A resposta se encontra na série Brasiliana Steampunk, inaugurada em 2014 com A Estranha Lição de Anatomia do Temível Doutor Louison. O autor dessa verdadeira saga é o santa-mariense Eneias Tavares, professor de literatura e pesquisador na UFSM.
         Em A Estranha Lição de Anatomia do Temível Doutor Louison, diversos personagens da literatura nacional se unem para enfrentar um assassino foragido, no longínquo ano de 1911. A ambientação envolve tecnologias fictícias como robôs a vapor, dirigíveis gigantes e outras máquinas típicas do gênero Steampunk (para saber mais a respeito, leia a lista dos Gêneros e Estéticas da Ficção Retrofuturista, do mesmo autor).
         A série Brasiliana Steampunk abrange um universo vasto, contando até mesmo com uma Websérie, chamada “A Todo Vapor”. Eu ainda sou um novato neste universo, e por isso decidi começar com um livro que serve de pré-sequência (história que antecede a trama principal, porém realizada mais tarde), conforme instrução do próprio Eneias. Esse livro será o objeto da crítica de hoje.
         Juca Pirama – Marcado para Morrer é uma história de investigação e aventura se passando no universo de Brasiliana Steampunk, porém focada em apenas um dos heróis, no ano de 1907. O protagonista é um lutador de rua famoso por suas habilidades com adagas e defensor das crianças pobres da cidade de São Paulo, dominada pelas novas (melhor dizendo, “velhas”) máquinas a vapor.
         Após surrar os capangas de um malfeitor que cobrava “proteção” dos comerciantes na cidade baixa, Juca Pirama é descoberto pelo escrivão José Silva e recebe trabalho como segurança de Cassandra e Cecília, as duas filhas (uma jovem mulher e uma criança, respectivamente) de um rico cafeicultor chamado Petrônio Gouvêa, desaparecido de sua própria casa em circunstâncias misteriosas. O herói se vê enredado em uma trama bizarra, envolvendo sociedades secretas, divindades ancestrais e até rituais de canibalismo!
         Esse é um resumo básico do livro e agora entraremos nas nuances do mesmo, falando dos personagens, do enredo e outros elementos. Entretanto, se eu tivesse de fazer uma análise geral, eu diria que a obra é boa no que se propõe e os personagens são interessantes, a despeito do enredo não se destacar muito. Sem mais delongas, embarque no Volksfuligem (um automóvel desse mundo fantástico), e vamos em frente!

Pontos positivos:



1-Prefácio de Felipe Reis.

         Logo nas primeiras páginas, encontramos um prefácio sob o título “Um Juca Pirama bem diferente do que vimos na Escola”, de autoria de Felipe Reis, o coautor desse livro ao lado de Eneias Tavares. Felipe Reis comenta sua primeira experiência na escola com o poema escrito por Gonçalves Dias; nas palavras dele, a leitura não foi muito proveitosa, em parte devido à inexperiência ou desinteresse.
         Apenas tardiamente Felipe descobriria a “magia” da obra, a tristeza e a força em seu conteúdo. Nas palavras do coautor, I-Juca Pirama soava quase como um “rap” do Século XIX, em seus versos ligeiros e nas cenas de ação. Seguindo com o prefácio, Felipe compara os “dois Jucas”, o de Gonçalves Dias e o da série Brasiliana Steampunk; enquanto o personagem original era um herói típico do romantismo, o protagonista do livro é um personagem feliz, apesar de sofrido, como todo herói brasileiro.
         Aproveitando o gancho dado pelo prefácio, falarei de minha própria experiência inicial com Juca Pirama: Apesar de gostar do poema, bem como da mensagem de sufocar o orgulho e defender a própria honra, confesso que não era a minha obra preferida na temática indianista do romantismo. Sempre gostei mais de O Guarani e Ubirajara, ambas de autoria do escritor cearense José de Alencar.

2-Versos em Paródia.


          

         

     Cada capítulo de Juca Pirama – Marcado para Morrer é iniciado com versos baseados no poema original, escritos com letras brancas sobre um fundo preto. Sem dúvida é uma excelente homenagem à obra de Gonçalves Dias, além de acentuar a inesperada semelhança entre as duas selvas: tanto a mata dominada pelos Aimorés (os vilões do poema original) como a paisagem urbana da São Paulo Steampunk no livro são territórios a serem desbravados apenas pelos mais valentes.

         Vamos fazer um comparativo entre os primeiros trechos do poema, e a respectiva paródia feita por Eneias Tavares:

No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos – cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas cortes,
Assombram das matas a imensa extensão.

São rudes, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!

         Agora, o correspondente escrito pelo autor do livro:

No meio dos arcos de muitos produtos,
Cercados de sacas, cobertos de custos,
Alteiam-se os gritos da servil nação,
São homens, mulheres, crianças e fortes,
Fracos na guerra e amigos do esporte,
Que olham a briga querendo explosão!

São rudes, sinceros, famintos de pão,
Que gritam injúrias de baixo calão!
São paulistas de almas contentes,
Infantes que avivam o brio do cantor,
Arfando seu nome a todas as gentes,
Num mar de prodígios, de glória e terror!

3-A história já começa com uma boa briga!

         A frase inicial da história é “vai lá, Juca Pirama! Acaba com eles!”, dita por um dos meninos de rua, enquanto o protagonista enfrenta os capangas de um criminoso chamado Tonico Porcaria (sim, este é o nome dele). Outrora um simples trabalhador braçal e recém-chegado na região, Juca Pirama decide tomar as dores de quem sofre a exploração de Tonico, dando seu “comitê de boas vindas”.
         É impossível não se lembrar dos tutoriais de videogames nesse trecho. É como se controlássemos Juca Pirama com o joystick ou o teclado, aprendendo os golpes e as manobras evasivas, enquanto o personagem puxa a “sabedoria popular” entre um soco e um chute. Outra cena a surgir na memória ao ler esse trecho é o Aladdin fugindo dos guardas da cidade de Agrabah, após roubar um pão e dá-lo aos meninos de rua.
         O bom humor do protagonista também é revelado durante e após a briga, ao fazer piadas com a altura do Tonico Porcaria: “Difícil estar por baixo, não é mesmo, Seu Tonico? Enfrentar pessoas do seu tamanho é um grande desafio!”. Após resolver o enleio, Juca solta outro de seus trocadilhos: “Enquanto a gentalha jura vingança, a gente dança!”.

4-O Protagonista Marcado para Morrer.

         Como vocês devem ter percebido no ponto anterior, um dos elementos que eu mais gostei neste livro foi o herói. Malandro, esforçado, piadista e pau para toda obra, Juca Pirama é uma combinação única de agressividade e sensibilidade, um homem vingativo e amargurado, porém capaz de atos de extrema bondade. Apesar de simples nos hábitos, Juca Pirama é ligeiro no raciocínio e possui um instinto de sobrevivência aguçado.
         Um dos trechos que evidencia o caráter do protagonista ocorre ainda no primeiro capítulo, quando Juca recebe um adiantamento (um “faz-me-rir”, nas palavras dele) de José Silva, e vai comprar roupas em uma alfaiataria na qual prestou serviços, porém foi desprezado pelo dono do local. Segue-se esse trecho, onde Juca descreve as roupas que gostaria de adquirir, sob o olhar espantado do proprietário:
         “Quero roupas bonitas e escuras, como homens de classe costumam usar. Mas nada de gravatas, que não sou desses. Antes, quero roupas possíveis de usar em respeitáveis ambientes de trabalho durante o dia e em pouco recomendáveis casas noturnas, se é que o senhor me entende!”
         Mesmo sob as espessas camadas de bom humor é possível notar uma carga emocional pesada no herói, reflexo de sua condição de mestiço, com pai branco e mãe índia, bem como da culpa por ser o único sobrevivente de um incêndio no orfanato onde viveu. Nesse mesmo local ele desenvolveria o gosto pela leitura, e este apreço pelos livros ressurgiria ao visitar a biblioteca da família Gouvêa, ciente que “uma biblioteca revela a alma de seu dono”.
         A fúria fervente de Juca Pirama também lhe serve de arma em diversas ocasiões, ao lado das inúmeras adagas que carrega consigo. Essa mesma fúria desperta a magia inerente a Juca, durante a fuga da prisão; tal magia consistia em uma enorme bola de fogo explosiva, alimentada dentro do coração dele por sentimentos contraditórios, como amor, desejo, desprezo, raiva, tristeza e carinho.

5-Juca levando Cecília para conhecer São Paulo.

                  

         Lá pelo meio do livro ocorre um “atentado terrorista” na sede da empresa da família Gouvêa, um evento da qual Juca e Cassandra se escapam por pouco. Cecília vai visitar os dois no hospital, e a mais velha das irmãs Gouvêa ordena Juca a levar a menina de volta por motivos de segurança. O protagonista, entretanto, tem uma ideia diferente no caminho, e decide apresentar a cidade de São Paulo a Cecília antes de retornar.
         As cenas que se seguem os retratam indo de um lado a outro, conhecendo diversos espaços públicos e históricos da Pauliceia, como a Estação da Luz, a Pinacoteca e o Mercado Velho. Após caminharem uma boa distância pelas periferias da cidade, Cecília pergunta a Juca sobre como é viver nesse lugar, e recebe a seguinte resposta:
         “É como viver em um coração pulsante. Às vezes ele acelera, às vezes ele acalma. Em alguns dias, é amor o que você respira. Em outros, puro ódio ou simples enfado, cansaço mesmo. Em algumas noites, há canções que fazem rir e dançar. Em outras, há tragédias que o fazem chorar”.
         Em contrapartida, Juca pergunta para a mais nova das irmãs Gouvêa como é viver na mansão, e a menina faz o seguinte desabafo:
         “É frio. Apenas frio. Digo, a riqueza é boa e eu seria hipócrita se dissesse algo diferente. Mas é como ter um passarinho. Você precisa cuidar, dar comida, vigiar para os gatos não chegarem perto. Agora, multiplique isso por mil passarinhos. Se você não tomar cuidado, só vive para cuidar deles. É assim como meu pai vivia e é como Cassandra vive”.
         Inspirado pela frase da menina, Juca convida Cecília a soltar alguns passarinhos. Eles compram gaiolas com passarinhos e vão à beira do rio; para a surpresa de Cecília, os bichinhos hesitam em sair de seu confinamento, ao que Juca explica: “Ficam tanto tempo aprisionados, que quando a liberdade lhes é dada, levam tempo a aceitá-la”. A dupla abriu todas as gaiolas, e foi preciso um passarinho valente sair antes para os outros seguirem seu exemplo.
         Esse momento tranquilo de Juca e Cecília, entretanto, logo seria cortado por uma triste notícia: O herói descobre que um dos meninos do porto foi afogado pelos capangas do Tonico Porcaria. Enfurecido, ele parte para tirar satisfações e se dá mal na briga subsequente, indo para a cadeia logo em seguida.

6-O Capitão Mello Bandeira.

         A aparição inicial de Mello Bandeira ocorre em uma lembrança do protagonista, em sua primeira passagem pela prisão. O capitão vindo do Rio de Janeiro era incumbido da carceragem e conhecido por sua atitude inflexível, porém não demorou a virar amigo de Juca Pirama, ao ponto de jogarem xadrez. Mello Bandeira ensinou outra lição importante ao herói: “Matar não é o desafio, e sim esconder o corpo”.
         O segundo encontro entre Mello Bandeira e Juca Pirama, como os leitores podem imaginar, ocorreu em circunstâncias bem parecidas. O protagonista até avisa Cassandra que tentar subornar Mello Bandeira é inútil, pois nunca vira alguém com o caráter dele. Nem mesmo um dos vilões consegue subornar o oficial de polícia, a despeito de levantar essa suspeita em Juca Pirama.
         Uma das razões para Mello Bandeira e Juca Pirama se tornarem amigos se deve a certa inveja por parte do sisudo oficial, na forma como o protagonista leva a vida. Para Mello Bandeira, que não possuía amigos ou parentes em São Paulo, a companhia do rapaz era um bom passatempo. Ambos também detestam opulência e frivolidades, embora por razões diferentes: Enquanto Juca associa esse comportamento aos criminosos de colarinho branco, Mello Bandeira aprendeu a ser austero e a evitar o luxo.
         Os dois também se aproximam na determinação em não deixar o mal triunfar sobre a vida. Na prática, o investigador age como um deuteragonista (protagonista secundário) na história de Juca Pirama – Marcado para Morrer, embora prefira um método mais discreto em comparação com a fúria selvagem do protagonista.

7-Crítica sutil ao feminismo radical.

         

         A crítica ocorre durante um trecho curto, porém digno de nota, onde o protagonista expõe a hipocrisia de uma personagem, outrora tão determinada em provar a igualdade entre homens e mulheres nos negócios. Ao descobrir a aliança desta personagem (cujo nome não será dito aqui, para evitar revelações no enredo) com os homens que ela mais despreza em São Paulo, Juca questiona o que surgirá desse acordo.
         A discussão continua com a personagem afirmando que não conseguirá mudar o que considera errado apenas por seus próprios recursos, justificando a cumplicidade. Aturdido com a resposta, Juca Pirama mais uma vez tenta apelar à razão, afirmando que manter uma aliança com homens tão cruéis apenas resultaria em mais sofrimento para ela e também para tudo o que acredita. A manobra chega a levantar algumas dúvidas na vilã, porém não atinge sucesso em demovê-la de seus intentos.

8-Presença do poema original de Gonçalves Dias nos trechos finais, ao lado de uma análise.

         Após o final do livro, somos apresentados a uma análise da obra original feita por Eneias Tavares, apontando seu significado na época em que foi concebida. Como a maior parte dos estudantes já está cansada de saber, Gonçalves Dias trouxe os indígenas à literatura nacional não como “bons selvagens” ou bárbaros, e sim como personagens de seu tempo, apesar de ainda retratá-los com certa dose de idealismo.
         Nesse trecho de seis páginas, Eneias Tavares comenta alguns projetos de Gonçalves Dias para a educação brasileira, bem como o encontro deste poeta com outras figuras do Romantismo, durante sua passagem pela Universidade de Coimbra. O autor ainda aproveita para soltar uma indireta, apontando a “ditadura machadiana” pós-romântica, aliada ao baixo nível de patriotismo na sociedade brasileira.
         Com a análise crítica/histórica devidamente realizada, encontramos o poema original logo em seguida, com todos os dez versos. Apesar de ser mais fácil encontrar I-Juca Pirama em PDF na internet, confesso que ver a obra no finalzinho foi muito nostálgico, pois sempre gostei de estudar o período do Romantismo nas aulas de Literatura.

Sinal Amarelo: Referência obscura ao autor Willian Blake.





         Além da obra original de Gonçalves Dias, Juca Pirama – Marcado para Morrer possui referências a um poeta, pintor e impressor britânico, chamado Willian Blake. Esse autor não obteve fama em vida, a despeito de hoje ser valorizado no movimento romântico da passagem do Século XVIII para o Século XIX; entretanto, ele continua pouco conhecido fora dos países de língua inglesa.
         Considero a citação a Willian Blake uma verdadeira “faca de dois gumes” para a obra: Por um lado, é interessante trazer algo a mais na concepção de um livro que se propõe a homenagear um trabalho anterior importante na literatura brasileira. Por outro lado, colocar mais referências, dando-lhes peso na resolução do conflito da trama, pode gerar alguma confusão para leitores desacostumados.
         Talvez eu esteja subestimando a capacidade de compreensão dos leitores (algo que eu particularmente detesto fazer quando escrevo). Entretanto, a natureza da mitologia fantástica criada por Willian Blake não ajuda muito, por tratar de assuntos complexos como o conflito entre a Razão e a Imaginação. Blake era um crítico ferrenho do Racionalismo e do Cientificismo surgidos no Iluminismo, e em um trecho da primeira metade do livro, Cecília chega a afirmar que “Blake não é poesia, é Bizarrice”.
         O principal “deus” criado por Blake chama-se Urizen, cujo nome é um anagrama de “Your Reason” (“Sua Razão”) e “Horizon” (“Horizonte”), sendo adorado pela Maçonaria nesse universo fictício como personificação do raciocínio e da lógica. Urizen é retratado como um homem idoso barbado, sempre com um grande compasso em mãos, com o qual ele molda a existência e todas as suas normas naturais e morais. Para Blake, Urizen era criador e também um prisioneiro das regras imutáveis.

Pontos negativos:



1-Tirem as crianças da sala!

         Vou bancar o moralista aqui, e sinceramente não me importo. Se existe algo que me chamou a atenção de forma negativa foram as muitas cenas fazendo alusão a sexo, ou então retratando o ato sexual de forma grotesca e selvagem. Nem mesmo o trecho de Juca apresentando São Paulo à Cecília está livre da baixaria, pois logo no início da viagem aparecem prostitutas interpelando o protagonista.
         Começaremos com a própria família Gouvêa, cujo patriarca desaparecido criou um método “peculiar” para firmar negócios com outros empresários de São Paulo, oferecendo sua filha mais velha a eles. E por “oferecer” a filha, eu falo em prostituição, mesmo. Como se não bastasse o absurdo da situação, a própria moça se defende afirmando que “estamos no Século Vinte, e hoje uma mulher faz com seu sexo o que bem lhe aprouver”.
         Outra cena de embrulhar o estômago envolve uma conversa entre Juca e uma das matronas da residência dos Gouvêa, alertando-o para não tentar seduzir Cecília. Como seria de se esperar, o protagonista fica enojado em imaginar alguém cometendo essa atrocidade com uma menina adoentada de catorze anos, porém simpatizou com as palavras da matrona, ciente que “tais canalhices tinham virado regra”.
         Logo no início do capítulo IV ocorre uma cena de sexo explícito, verdadeiro “momento vergonha alheia”. Trata-se de um parágrafo de catorze linhas, cheio de analogias nada sutis. Eu tive que interromper a leitura por alguns minutos após ler aquele trecho, pois não conseguia parar de rir, ainda mais ao imaginar o autor escrevendo aquilo com orgulho. Juca Pirama – Marcado para Morrer possui diversos méritos, mas essa cena passa longe deles.

2-A Noite dos Maçons Canibais.

         O trecho final de Juca Pirama – Marcado para Morrer é uma loucura total. Após fugir da cadeia e se esconder nas ruínas do orfanato onde passou a infância, Juca retorna à mansão Gouvêa, a fim de evitar que as duas irmãs sejam sacrificadas em um “Ritual de Sangue”, envolvendo maçons mascarados. Para seu azar, Juca descobre que o plano da maçonaria era acabar com ele, e não as irmãs.
         Peço ao leitor que releia o parágrafo acima, com calma e paciência. Difícil fazê-lo sem esboçar um leve sorriso, não é mesmo? E fica ainda pior (pelos motivos errados): Eles são canibais. E uma das líderes do grupelho aparece vestida de Cleópatra. A situação apresentada no clímax é tão ridícula que parece saída daqueles filmes de terror bizarros e violentos feitos por cineastas italianos entre as décadas de 1960 e 1970.
         É verdade que o ritual faz referência ao poema original, pois os maçons queriam absorver a coragem e a força do herói. Entretanto, a obra de Gonçalves Dias retratava um guerreiro Tupi lutando contra uma tribo de Aimorés. O livro escrito por Eneias Tavares, por sua vez, mostra um caboclo disfarçado com um uniforme de polícia roubado durante a fuga da cadeia e distribuindo facadas em maçons mascarados (muitos deles idosos), liderados por uma mulher vestida de Cleópatra.
         Não existe forma alguma de levar esse último embate a sério, mesmo com a forte carga emocional revelada perto do final. Ao ler esse trecho, eu me imaginei ouvindo a música “Metrô Linha 743”, do eterno Raul Seixas; essa música conta a história de um sujeito que é capturado por canibais comedores de cérebro, e seu clima estranho combina perfeitamente com a cena de Juca Pirama – Marcado para Morrer.





E bem, e o Resto?

         Em suas 157 páginas de história, Juca Pirama – Marcado para Morrer consegue divertir e chocar o leitor, apresentando um personagem carismático e fácil de simpatizar, em uma trama que não é lá grande coisa. Na verdade, nota-se que o principal objetivo da obra é servir de porta de entrada para o vasto universo de Brasiliana Steampunk.
         Descontando as cenas de baixaria e os vilões exagerados e estereotipados, a história é um excelente passatempo, capaz de ser lido em pouco menos de duas horas. Apenas sugiro fazê-lo no conforto de seu lar, evitando ler em público; assim você evitará assustar alguém com suas gargalhadas, cortesia das tiradas do herói ou das cenas mais estranhas.

Nota final: 08/10.

Texto escrito por Mateus Ernani Heinzmann Bulow. 

*Mateus, o autor desse texto de crítica literária, é gaúcho da cidade de Santa Maria/RS, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), escritor e poeta. Mateus tem dois livros publicados: "Taquarê - Entre a Selva e o Mar" e "Taquarê - Entre um Império e um Reino." 

*Imagens dos livros do nosso colunista Mateus (autor de postagens com análises literárias e textos históricos): 





*Link do primeiro livro do Mateus no Skoob:


*Confira todas as postagens da coluna do Mateus no blogue:


*Sobre os livros do Mateus:




*Se você gostou da análise literária de Mateus, confira outra análise literária dele:

*Duncan Garibaldi e a Ordem dos Bandeirantes de André Zanki Cordenonsi -- Análise de Mateus. 



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