Olá, pessoal! Hoje a postagem foi escrita pelo meu amigo escritor Mateus Ernani Heinzmann Bulow que fez uma análise literária da história "Juca Pirama -- Marcado para morrer", obra de Eneias Tavares.
A postagem está bem interessante, pois é a análise de uma obra literária de um escritor nacional (Eneias Tavares) feita por outro escritor nacional, nosso colunista Mateus Bulow. Uma das nossas metas é incentivar o crescimento da literatura nacional e de jovens autores. E uma análise crítica feita por outro escritor ganha mais credibilidade.
Aviso aos leitores: A análise está segura, equilibrada, e o autor da postagem foi cuidadoso para não revelar Spoilers. Entretanto, há suaves Spoilers distribuídos nos pontos positivos e alguns Spoilers curiosos nos pontos negativos. O objetivo do blogue é incentivar a literatura. Boa leitura!
Juca Pirama – Marcado para Morrer – Análise.
O que acontece
quando um professor apaixonado por fantasia e ficção científica decide
revisitar clássicos da literatura brasileira? A resposta se encontra na série
Brasiliana Steampunk, inaugurada em 2014 com A Estranha Lição de Anatomia do
Temível Doutor Louison. O autor dessa verdadeira saga é o santa-mariense Eneias
Tavares, professor de literatura e pesquisador na UFSM.
Em A Estranha
Lição de Anatomia do Temível Doutor Louison, diversos personagens da literatura
nacional se unem para enfrentar um assassino foragido, no longínquo ano de 1911.
A ambientação envolve tecnologias fictícias como robôs a vapor, dirigíveis
gigantes e outras máquinas típicas do gênero Steampunk (para saber mais a
respeito, leia a lista dos Gêneros e Estéticas da Ficção Retrofuturista, do
mesmo autor).
A série Brasiliana
Steampunk abrange um universo vasto, contando até mesmo com uma Websérie,
chamada “A Todo Vapor”. Eu ainda sou um novato neste universo, e por isso decidi
começar com um livro que serve de pré-sequência (história que antecede a trama
principal, porém realizada mais tarde), conforme instrução do próprio Eneias.
Esse livro será o objeto da crítica de hoje.
Juca Pirama –
Marcado para Morrer é uma história de investigação e aventura se passando no
universo de Brasiliana Steampunk, porém focada em apenas um dos heróis, no ano
de 1907. O protagonista é um lutador de rua famoso por suas habilidades com
adagas e defensor das crianças pobres da cidade de São Paulo, dominada pelas
novas (melhor dizendo, “velhas”) máquinas a vapor.
Após surrar os
capangas de um malfeitor que cobrava “proteção” dos comerciantes na cidade
baixa, Juca Pirama é descoberto pelo escrivão José Silva e recebe trabalho como
segurança de Cassandra e Cecília, as duas filhas (uma jovem mulher e uma
criança, respectivamente) de um rico cafeicultor chamado Petrônio Gouvêa,
desaparecido de sua própria casa em circunstâncias misteriosas. O herói se vê
enredado em uma trama bizarra, envolvendo sociedades secretas, divindades
ancestrais e até rituais de canibalismo!
Esse é um resumo
básico do livro e agora entraremos nas nuances do mesmo, falando dos
personagens, do enredo e outros elementos. Entretanto, se eu tivesse de fazer
uma análise geral, eu diria que a obra é boa no que se propõe e os personagens
são interessantes, a despeito do enredo não se destacar muito. Sem mais
delongas, embarque no Volksfuligem (um automóvel desse mundo fantástico), e
vamos em frente!
Pontos positivos:
1-Prefácio de Felipe Reis.
Logo nas primeiras
páginas, encontramos um prefácio sob o título “Um Juca Pirama bem diferente do
que vimos na Escola”, de autoria de Felipe Reis, o coautor desse livro ao lado
de Eneias Tavares. Felipe Reis comenta sua primeira experiência na escola com o
poema escrito por Gonçalves Dias; nas palavras dele, a leitura não foi muito
proveitosa, em parte devido à inexperiência ou desinteresse.
Apenas tardiamente
Felipe descobriria a “magia” da obra, a tristeza e a força em seu conteúdo. Nas
palavras do coautor, I-Juca Pirama soava quase como um “rap” do Século XIX, em
seus versos ligeiros e nas cenas de ação. Seguindo com o prefácio, Felipe
compara os “dois Jucas”, o de Gonçalves Dias e o da série Brasiliana Steampunk;
enquanto o personagem original era um herói típico do romantismo, o
protagonista do livro é um personagem feliz, apesar de sofrido, como todo herói
brasileiro.
Aproveitando o
gancho dado pelo prefácio, falarei de minha própria experiência inicial com
Juca Pirama: Apesar de gostar do poema, bem como da mensagem de sufocar o
orgulho e defender a própria honra, confesso que não era a minha obra preferida
na temática indianista do romantismo. Sempre gostei mais de O Guarani e
Ubirajara, ambas de autoria do escritor cearense José de Alencar.
Cada capítulo de Juca Pirama – Marcado para Morrer é iniciado com versos baseados no poema original, escritos com letras brancas sobre um fundo preto. Sem dúvida é uma excelente homenagem à obra de Gonçalves Dias, além de acentuar a inesperada semelhança entre as duas selvas: tanto a mata dominada pelos Aimorés (os vilões do poema original) como a paisagem urbana da São Paulo Steampunk no livro são territórios a serem desbravados apenas pelos mais valentes.
Vamos fazer um
comparativo entre os primeiros trechos do poema, e a respectiva paródia feita
por Eneias Tavares:
No meio
das tabas de amenos verdores,
Cercadas
de troncos – cobertos de flores,
Alteiam-se
os tetos d’altiva nação;
São
muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis
na guerra, que em densas cortes,
Assombram
das matas a imensa extensão.
São
rudes, severos, sedentos de glória,
Já
prélios incitam, já cantam vitória,
Já
meigos atendem à voz do cantor:
São
todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome
lá voa na boca das gentes,
Condão
de prodígios, de glória e terror!
Agora, o
correspondente escrito pelo autor do livro:
No meio
dos arcos de muitos produtos,
Cercados
de sacas, cobertos de custos,
Alteiam-se
os gritos da servil nação,
São
homens, mulheres, crianças e fortes,
Fracos
na guerra e amigos do esporte,
Que
olham a briga querendo explosão!
São
rudes, sinceros, famintos de pão,
Que
gritam injúrias de baixo calão!
São
paulistas de almas contentes,
Infantes
que avivam o brio do cantor,
Arfando
seu nome a todas as gentes,
Num mar
de prodígios, de glória e terror!
3-A história já começa com uma boa briga!
A frase inicial da
história é “vai lá, Juca Pirama! Acaba com eles!”, dita por um dos meninos de
rua, enquanto o protagonista enfrenta os capangas de um criminoso chamado
Tonico Porcaria (sim, este é o nome dele). Outrora um simples trabalhador
braçal e recém-chegado na região, Juca Pirama decide tomar as dores de quem
sofre a exploração de Tonico, dando seu “comitê de boas vindas”.
É impossível não
se lembrar dos tutoriais de videogames nesse trecho. É como se controlássemos
Juca Pirama com o joystick ou o teclado, aprendendo os golpes e as manobras
evasivas, enquanto o personagem puxa a “sabedoria popular” entre um soco e um
chute. Outra cena a surgir na memória ao ler esse trecho é o Aladdin fugindo
dos guardas da cidade de Agrabah, após roubar um pão e dá-lo aos meninos de
rua.
O bom humor do
protagonista também é revelado durante e após a briga, ao fazer piadas com a
altura do Tonico Porcaria: “Difícil estar por baixo, não é mesmo, Seu Tonico?
Enfrentar pessoas do seu tamanho é um grande desafio!”. Após resolver o enleio,
Juca solta outro de seus trocadilhos: “Enquanto a gentalha jura vingança, a
gente dança!”.
4-O Protagonista Marcado para Morrer.
Como vocês devem
ter percebido no ponto anterior, um dos elementos que eu mais gostei neste
livro foi o herói. Malandro, esforçado, piadista e pau para toda obra, Juca
Pirama é uma combinação única de agressividade e sensibilidade, um homem
vingativo e amargurado, porém capaz de atos de extrema bondade. Apesar de
simples nos hábitos, Juca Pirama é ligeiro no raciocínio e possui um instinto
de sobrevivência aguçado.
Um dos trechos que
evidencia o caráter do protagonista ocorre ainda no primeiro capítulo, quando
Juca recebe um adiantamento (um “faz-me-rir”, nas palavras dele) de José Silva,
e vai comprar roupas em uma alfaiataria na qual prestou serviços, porém foi
desprezado pelo dono do local. Segue-se esse trecho, onde Juca descreve as
roupas que gostaria de adquirir, sob o olhar espantado do proprietário:
“Quero roupas bonitas e escuras, como homens
de classe costumam usar. Mas nada de gravatas, que não sou desses. Antes, quero
roupas possíveis de usar em respeitáveis ambientes de trabalho durante o dia e
em pouco recomendáveis casas noturnas, se é que o senhor me entende!”
Mesmo sob as
espessas camadas de bom humor é possível notar uma carga emocional pesada no
herói, reflexo de sua condição de mestiço, com pai branco e mãe índia, bem como
da culpa por ser o único sobrevivente de um incêndio no orfanato onde viveu.
Nesse mesmo local ele desenvolveria o gosto pela leitura, e este apreço pelos
livros ressurgiria ao visitar a biblioteca da família Gouvêa, ciente que “uma
biblioteca revela a alma de seu dono”.
A fúria fervente
de Juca Pirama também lhe serve de arma em diversas ocasiões, ao lado das
inúmeras adagas que carrega consigo. Essa mesma fúria desperta a magia inerente
a Juca, durante a fuga da prisão; tal magia consistia em uma enorme bola de
fogo explosiva, alimentada dentro do coração dele por sentimentos
contraditórios, como amor, desejo, desprezo, raiva, tristeza e carinho.
Lá pelo meio do
livro ocorre um “atentado terrorista” na sede da empresa da família Gouvêa, um
evento da qual Juca e Cassandra se escapam por pouco. Cecília vai visitar os
dois no hospital, e a mais velha das irmãs Gouvêa ordena Juca a levar a menina
de volta por motivos de segurança. O protagonista, entretanto, tem uma ideia
diferente no caminho, e decide apresentar a cidade de São Paulo a Cecília antes
de retornar.
As cenas que se
seguem os retratam indo de um lado a outro, conhecendo diversos espaços
públicos e históricos da Pauliceia, como a Estação da Luz, a Pinacoteca e o
Mercado Velho. Após caminharem uma boa distância pelas periferias da cidade,
Cecília pergunta a Juca sobre como é viver nesse lugar, e recebe a seguinte
resposta:
“É como viver em um coração pulsante.
Às vezes ele acelera, às vezes ele acalma. Em alguns dias, é amor o que você
respira. Em outros, puro ódio ou simples enfado, cansaço mesmo. Em algumas
noites, há canções que fazem rir e dançar. Em outras, há tragédias que o fazem
chorar”.
Em contrapartida,
Juca pergunta para a mais nova das irmãs Gouvêa como é viver na mansão, e a
menina faz o seguinte desabafo:
“É frio. Apenas frio. Digo, a riqueza é
boa e eu seria hipócrita se dissesse algo diferente. Mas é como ter um
passarinho. Você precisa cuidar, dar comida, vigiar para os gatos não chegarem
perto. Agora, multiplique isso por mil passarinhos. Se você não tomar cuidado,
só vive para cuidar deles. É assim como meu pai vivia e é como Cassandra vive”.
Inspirado pela
frase da menina, Juca convida Cecília a soltar alguns passarinhos. Eles compram
gaiolas com passarinhos e vão à beira do rio; para a surpresa de Cecília, os
bichinhos hesitam em sair de seu confinamento, ao que Juca explica: “Ficam
tanto tempo aprisionados, que quando a liberdade lhes é dada, levam tempo a
aceitá-la”. A dupla abriu todas as gaiolas, e foi preciso um passarinho valente
sair antes para os outros seguirem seu exemplo.
Esse momento
tranquilo de Juca e Cecília, entretanto, logo seria cortado por uma triste
notícia: O herói descobre que um dos meninos do porto foi afogado pelos
capangas do Tonico Porcaria. Enfurecido, ele parte para tirar satisfações e se
dá mal na briga subsequente, indo para a cadeia logo em seguida.
6-O Capitão Mello Bandeira.
A aparição inicial
de Mello Bandeira ocorre em uma lembrança do protagonista, em sua primeira
passagem pela prisão. O capitão vindo do Rio de Janeiro era incumbido da
carceragem e conhecido por sua atitude inflexível, porém não demorou a virar
amigo de Juca Pirama, ao ponto de jogarem xadrez. Mello Bandeira ensinou outra
lição importante ao herói: “Matar não é o desafio, e sim esconder o corpo”.
O segundo encontro
entre Mello Bandeira e Juca Pirama, como os leitores podem imaginar, ocorreu em
circunstâncias bem parecidas. O protagonista até avisa Cassandra que tentar
subornar Mello Bandeira é inútil, pois nunca vira alguém com o caráter dele.
Nem mesmo um dos vilões consegue subornar o oficial de polícia, a despeito de
levantar essa suspeita em Juca Pirama.
Uma das razões
para Mello Bandeira e Juca Pirama se tornarem amigos se deve a certa inveja por
parte do sisudo oficial, na forma como o protagonista leva a vida. Para Mello
Bandeira, que não possuía amigos ou parentes em São Paulo, a companhia do rapaz
era um bom passatempo. Ambos também detestam opulência e frivolidades, embora
por razões diferentes: Enquanto Juca associa esse comportamento aos criminosos
de colarinho branco, Mello Bandeira aprendeu a ser austero e a evitar o luxo.
Os dois também se
aproximam na determinação em não deixar o mal triunfar sobre a vida. Na
prática, o investigador age como um deuteragonista (protagonista secundário) na
história de Juca Pirama – Marcado para Morrer, embora prefira um método mais
discreto em comparação com a fúria selvagem do protagonista.
A crítica ocorre
durante um trecho curto, porém digno de nota, onde o protagonista expõe a
hipocrisia de uma personagem, outrora tão determinada em provar a igualdade
entre homens e mulheres nos negócios. Ao descobrir a aliança desta personagem
(cujo nome não será dito aqui, para evitar revelações no enredo) com os homens
que ela mais despreza em São Paulo, Juca questiona o que surgirá desse acordo.
A discussão
continua com a personagem afirmando que não conseguirá mudar o que considera
errado apenas por seus próprios recursos, justificando a cumplicidade. Aturdido
com a resposta, Juca Pirama mais uma vez tenta apelar à razão, afirmando que
manter uma aliança com homens tão cruéis apenas resultaria em mais sofrimento
para ela e também para tudo o que acredita. A manobra chega a levantar algumas
dúvidas na vilã, porém não atinge sucesso em demovê-la de seus intentos.
8-Presença do poema original de Gonçalves Dias nos trechos
finais, ao lado de uma análise.
Após o final do
livro, somos apresentados a uma análise da obra original feita por Eneias
Tavares, apontando seu significado na época em que foi concebida. Como a maior
parte dos estudantes já está cansada de saber, Gonçalves Dias trouxe os
indígenas à literatura nacional não como “bons selvagens” ou bárbaros, e sim
como personagens de seu tempo, apesar de ainda retratá-los com certa dose de
idealismo.
Nesse trecho de
seis páginas, Eneias Tavares comenta alguns projetos de Gonçalves Dias para a
educação brasileira, bem como o encontro deste poeta com outras figuras do
Romantismo, durante sua passagem pela Universidade de Coimbra. O autor ainda
aproveita para soltar uma indireta, apontando a “ditadura machadiana”
pós-romântica, aliada ao baixo nível de patriotismo na sociedade brasileira.
Com a análise
crítica/histórica devidamente realizada, encontramos o poema original logo em
seguida, com todos os dez versos. Apesar de ser mais fácil encontrar I-Juca
Pirama em PDF na internet, confesso que ver a obra no finalzinho foi muito
nostálgico, pois sempre gostei de estudar o período do Romantismo nas aulas de
Literatura.
Sinal Amarelo: Referência obscura ao autor Willian Blake.
Além da obra
original de Gonçalves Dias, Juca Pirama – Marcado para Morrer possui referências
a um poeta, pintor e impressor britânico, chamado Willian Blake. Esse autor não
obteve fama em vida, a despeito de hoje ser valorizado no movimento romântico
da passagem do Século XVIII para o Século XIX; entretanto, ele continua pouco
conhecido fora dos países de língua inglesa.
Considero a
citação a Willian Blake uma verdadeira “faca de dois gumes” para a obra: Por um
lado, é interessante trazer algo a mais na concepção de um livro que se propõe
a homenagear um trabalho anterior importante na literatura brasileira. Por
outro lado, colocar mais referências, dando-lhes peso na resolução do conflito
da trama, pode gerar alguma confusão para leitores desacostumados.
Talvez eu esteja
subestimando a capacidade de compreensão dos leitores (algo que eu
particularmente detesto fazer quando escrevo). Entretanto, a natureza da
mitologia fantástica criada por Willian Blake não ajuda muito, por tratar de assuntos
complexos como o conflito entre a Razão e a Imaginação. Blake era um crítico
ferrenho do Racionalismo e do Cientificismo surgidos no Iluminismo, e em um
trecho da primeira metade do livro, Cecília chega a afirmar que “Blake não é
poesia, é Bizarrice”.
O principal “deus”
criado por Blake chama-se Urizen, cujo nome é um anagrama de “Your Reason”
(“Sua Razão”) e “Horizon” (“Horizonte”), sendo adorado pela Maçonaria nesse
universo fictício como personificação do raciocínio e da lógica. Urizen é
retratado como um homem idoso barbado, sempre com um grande compasso em mãos,
com o qual ele molda a existência e todas as suas normas naturais e morais.
Para Blake, Urizen era criador e também um prisioneiro das regras imutáveis.
Pontos negativos:
1-Tirem as crianças da sala!
Vou bancar o
moralista aqui, e sinceramente não me importo. Se existe algo que me chamou a
atenção de forma negativa foram as muitas cenas fazendo alusão a sexo, ou então
retratando o ato sexual de forma grotesca e selvagem. Nem mesmo o trecho de
Juca apresentando São Paulo à Cecília está livre da baixaria, pois logo no
início da viagem aparecem prostitutas interpelando o protagonista.
Começaremos com a
própria família Gouvêa, cujo patriarca desaparecido criou um método “peculiar”
para firmar negócios com outros empresários de São Paulo, oferecendo sua filha
mais velha a eles. E por “oferecer” a filha, eu falo em prostituição, mesmo.
Como se não bastasse o absurdo da situação, a própria moça se defende afirmando
que “estamos no Século Vinte, e hoje uma mulher faz com seu sexo o que bem lhe
aprouver”.
Outra cena de
embrulhar o estômago envolve uma conversa entre Juca e uma das matronas da
residência dos Gouvêa, alertando-o para não tentar seduzir Cecília. Como seria
de se esperar, o protagonista fica enojado em imaginar alguém cometendo essa
atrocidade com uma menina adoentada de catorze anos, porém simpatizou com as
palavras da matrona, ciente que “tais canalhices tinham virado regra”.
Logo no início do
capítulo IV ocorre uma cena de sexo explícito, verdadeiro “momento vergonha
alheia”. Trata-se de um parágrafo de catorze linhas, cheio de analogias nada
sutis. Eu tive que interromper a leitura por alguns minutos após ler aquele
trecho, pois não conseguia parar de rir, ainda mais ao imaginar o autor
escrevendo aquilo com orgulho. Juca Pirama – Marcado para Morrer possui
diversos méritos, mas essa cena passa longe deles.
2-A Noite dos Maçons Canibais.
O trecho final de
Juca Pirama – Marcado para Morrer é uma loucura total. Após fugir da cadeia e
se esconder nas ruínas do orfanato onde passou a infância, Juca retorna à
mansão Gouvêa, a fim de evitar que as duas irmãs sejam sacrificadas em um
“Ritual de Sangue”, envolvendo maçons mascarados. Para seu azar, Juca descobre
que o plano da maçonaria era acabar com ele, e não as irmãs.
Peço ao leitor que
releia o parágrafo acima, com calma e paciência. Difícil fazê-lo sem esboçar um
leve sorriso, não é mesmo? E fica ainda pior (pelos motivos errados): Eles são
canibais. E uma das líderes do grupelho aparece vestida de Cleópatra. A situação
apresentada no clímax é tão ridícula que parece saída daqueles filmes de terror
bizarros e violentos feitos por cineastas italianos entre as décadas de 1960 e
1970.
É verdade que o
ritual faz referência ao poema original, pois os maçons queriam absorver a
coragem e a força do herói. Entretanto, a obra de Gonçalves Dias retratava um
guerreiro Tupi lutando contra uma tribo de Aimorés. O livro escrito por Eneias
Tavares, por sua vez, mostra um caboclo disfarçado com um uniforme de polícia
roubado durante a fuga da cadeia e distribuindo facadas em maçons mascarados
(muitos deles idosos), liderados por uma mulher vestida de Cleópatra.
Não existe forma
alguma de levar esse último embate a sério, mesmo com a forte carga emocional
revelada perto do final. Ao ler esse trecho, eu me imaginei ouvindo a música
“Metrô Linha 743”, do eterno Raul Seixas; essa música conta a história de um
sujeito que é capturado por canibais comedores de cérebro, e seu clima estranho
combina perfeitamente com a cena de Juca Pirama – Marcado para Morrer.
E bem, e o Resto?
Em suas 157
páginas de história, Juca Pirama – Marcado para Morrer consegue divertir e
chocar o leitor, apresentando um personagem carismático e fácil de simpatizar,
em uma trama que não é lá grande coisa. Na verdade, nota-se que o principal
objetivo da obra é servir de porta de entrada para o vasto universo de
Brasiliana Steampunk.
Descontando as
cenas de baixaria e os vilões exagerados e estereotipados, a história é um
excelente passatempo, capaz de ser lido em pouco menos de duas horas. Apenas
sugiro fazê-lo no conforto de seu lar, evitando ler em público; assim você evitará
assustar alguém com suas gargalhadas, cortesia das tiradas do herói ou das
cenas mais estranhas.
Nota final: 08/10.
*Mateus, o autor desse texto de crítica literária, é gaúcho da cidade de Santa Maria/RS, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), escritor e poeta. Mateus tem dois livros publicados: "Taquarê - Entre a Selva e o Mar" e "Taquarê - Entre um Império e um Reino."
*Imagens dos livros do nosso colunista Mateus (autor de postagens com análises literárias e textos históricos):
*Link do primeiro livro do Mateus no Skoob:
*Confira todas as postagens da coluna do Mateus no blogue:
*Sobre os livros do Mateus:
*Se você gostou da análise literária de Mateus, confira outra análise literária dele:
*Duncan Garibaldi e a Ordem dos Bandeirantes de André Zanki Cordenonsi -- Análise de Mateus.
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