Olá, pessoal! Agosto é o mês do folclore! No dia 22 de agosto, comemoramos o dia do folclore e costumamos resgatar as lendas que estão no imaginário das pessoas ao redor do mundo.
Pensando no tema, o nosso colunista Mateus Bülow resolveu escrever mais um texto que apresenta aquelas lendas misteriosas e intrigantes que despertam fascínio nos leitores mais curiosos. Entrelaçando ficção e realidade, a linha que separa a história da lenda, muitas vezes, se mostra tênue demais. Boa leitura!
10 Lendas e Figuras Fantásticas que Existem ou Existiram – Volume II.
Mais um ano, e mais um Dia do Folclore vindo aí. E como não podemos deixar uma tradição de lado, aí vem outra lista de histórias fantásticas que possuem fundo de verdade. Nessa edição nós traremos lendas urbanas, animais cuidando de crianças, uma ponte mítica, concepções históricas enganosas, arquétipos que nunca deixaram o imaginário global, e até mesmo os possíveis locais de existência de um mistério que ainda intriga a humanidade. Sem mais delongas, boa leitura!
1-Aranhas que se Escondem em Bananas.
Nossa primeira história trata de uma lenda urbana com raízes brasileiras. Na história que circulou na internet por algum tempo, uma mulher foi atacada por uma aranha que saiu de uma banana descascada; em outras versões, centenas de aranhas saíram de dentro dessa banana, após a eclosão de vários ovos. Assim como quase todas as histórias que circulam no mundo virtual, as bananas infestadas de aranhas somem e voltam ao centro das atenções, dependendo de quem veicula o “causo”.
A resolução desse mistério arrepiante possui uma boa e uma péssima notícia: Não existem registros de aranhas escondidas em bananas, mas existem espécies que apreciam fazer seus ninhos e esconderijos em plantações de banana, e duas delas são comuns no Brasil. As armadeiras e aranhas-marrons são aracnídeos encontrados com frequência em bananais, e seu veneno é muito perigoso. Enquanto as armadeiras são agressivas, as aranhas-marrons são mais reclusas, usando o veneno como último recurso.
2-Loba Capitolina.
Nossa próxima lenda nos levará aos primórdios da civilização Romana, com os dois irmãos fundadores da Cidade Eterna: Rômulo e Remo. Após ambos serem abandonados no rio Tibre por seu tio, o usurpador Amulius, os gêmeos foram encontrados por uma loba, que os amamentou e criou como se fossem seus filhos. Muitos anos depois, Rômulo e Remo seriam os líderes da luta que criaria a capital do último grande império da Antiguidade.
Como a saga de Rômulo e Remo é muito longa e complexa, concentremo-nos no mito da Loba, também chamada Lupa em latim antigo. Os lobos eram animais muito valorizados entre os povos latinos, e existiam cultos em honra aos canídeos selvagens; esses festivais eram realizados com o intuito de proteger as colheitas e rebanhos. Embora os lobos fossem ameaças aos pastores, os romanos nutriam um respeito imenso pelos animais.
Para a ideologia estatal romana, associar um animal sagrado à própria nação era uma forma útil de fortalecer os laços entre o passado e o presente, e também entre os extratos de uma sociedade tão desigual. A imagem da Loba e dos Irmãos Fundadores auxiliaria na criação de uma ideologia unificadora, explicando o seu uso frequente na arte romana, especialmente no Período Imperial.
Uma teoria alternativa afirma que a palavra “Loba” tinha outro significado, além da denominação do animal. Na Roma Antiga, as prostitutas mais experientes eram apelidadas como a fêmea do canídeo, provavelmente de forma jocosa. Dessa forma, o mito de Rômulo e Remo na verdade tratava de duas crianças abandonadas e resgatadas por uma prostituta, numa reviravolta condizente com a fundação de Roma: Ambos os irmãos desejavam criar uma sociedade onde os desprezados pudessem viver como cidadãos.
3-Ponte de Rama.
Na edição anterior das Lendas e Figuras Fantásticas nós falamos dos Vanaras, os valentes homens-macacos que auxiliaram Rama no resgate da princesa Sita no poema épico Ramayana. Um dos trechos mais conhecidos dessa obra-prima da literatura hindu fala de uma grande ponte construída pelos Vanaras, chamada Rama Setu (literalmente, “Ponte de Rama”), também conhecida como Ponte de Adão.
Como já descrevi muitas vezes o resumo do Ramayana em artigos anteriores, eu falarei apenas desse trecho em questão. A Ponte de Rama surgiria após o protagonista ouvir uma ordem do próprio Oceano, afirmando que ele precisaria construir uma ponte com pedras capazes de flutuar sobre a água. Para atingir esse intento, Rama deveria escrever o próprio nome nas pedras, enquanto os Vanaras e outros guerreiros e animais construiriam essa ponte formidável entre o continente e a ilha de Lanka, o reino do terrível Ravana.
Voltando ao mundo real, nós veremos que existe uma evidência notável da existência da Ponte de Rama, neste caso uma ponte natural entre o sul da Índia e o norte da ilha do Sri Lanka (percebeu a semelhança do nome?). Essa mesma ponte feita de calcário não foi obra de guerreiros macacos ou animais, e sim da natureza. Durante milênios as ondas acumularam sedimentos de calcário, enquanto recifes de corais floresceram ao redor, criando essa curiosa estrutura localizada em águas rasas.
4-Vigilantes Negros.
Nossa próxima lenda nos levará ao estado americano da Califórnia, onde ficam as Montanhas de Santa Lúcia. Segundo o folclore local, essas montanhas são o lar de criaturas gigantes e negras, capazes de surgir e sumir com rapidez, sem deixarem rastros. Os chamados Vigilantes Negros foram avistados primeiramente pelo povo nativo Chumash, e às vezes são descritos usando chapéus de aba larga e bengalas. Até hoje, nenhum ser humano conseguiu se aproximar de um Vigilante Negro, e sua existência continua a assombrar a região.
Uma explicação possível para as aparições dos Vigilantes Negros envolve o chamado Espectro de Brocken, comum em montanhas e locais úmidos. A sombra de uma pessoa aparece diante dela com o contorno mais luminoso e destacado, dando a impressão de que uma figura negra surgiu do nada. Em locais de inclinação acentuada e com nuvens brancas nos céus, o Espectro de Brocken costuma aparecer com maior nitidez.
5-Pólvora usada apenas em Fogos de Artifício.
Essa “lenda” poderia ser considerada antes de tudo uma má concepção histórica, mas é repetida com tanta frequência que já faz parte de um folclore informal. Até hoje é possível encontrar pessoas afirmando que os chineses medievais usavam a pólvora apenas nos fogos de artifício, e não em armas, o que explicaria a superioridade militar dos ocidentais sobre os orientais, durante muitos séculos. Existem razões explicando a persistência desse mito, e vamos analisar cada uma delas.
A pólvora foi descoberta na China por volta de 1200, e sua utilização em combate era esparsa, devido à dificuldade de produção e transporte. Os armamentos de pólvora mais comuns eram a Lança de Fogo e o Canhão de Mão (falamos dessa arma na lista dos Mitos da Era Medieval); ambos os engenhos podem ser considerados “ancestrais” das espingardas modernas. Os chineses também possuíam um lança-chamas parecido com as versões atuais, e até mesmo foguetes e minas terrestres improvisadas.
As lanças de fogo e os canhões de mão chegariam ao ocidente com ajuda dos mongóis, em sua expansão formidável sobre a Eurásia. Não demoraria até esses instrumentos de guerra conquistarem adeptos entre os belicosos e competitivos europeus. O canhão de mão evoluiria para o arcabuz e o mosquete, mais leves e práticos; no século XVI, quase todos os exércitos europeus já usavam a pólvora em combate.
Quando os europeus chegaram ao oriente, a China era governada pela Dinastia Ming, de tendência isolacionista e pouco afeita a fazer negócios com estrangeiros. O contato era limitado, e poucos ocidentais conseguiam obter informações sobre o país, gerando confusões na interpretação dos fatos. Depois das vitórias sobre os portugueses nas batalhas navais de Tunmen e Sincounwaan, os europeus evitaram se meter com os chineses.
A Dinastia Ming viu um desenvolvimento impressionante no uso das armas de fogo, mas os seus armamentos de pólvora ainda eram muito primitivos em comparação com os canhões, arcabuzes e mosquetes dos europeus. Diversos generais a serviço da Dinastia Ming até preferiam contrabandear armas europeias ao reforçarem suas tropas. Os chineses também nunca deixaram de usar arcos e flechas em guerra, o que pode ter confundido os ocidentais que tiveram acesso aos escassos dados sobre o país.
Outra possível razão para a ideia errada de que os chineses não usavam pólvora na guerra deve-se talvez à nomeação de seus armamentos. Na linguagem Mandarim, os canhões e catapultas são chamados Hu Dun Pao (literalmente, “Lançadores de Bolotas”), sem uma real diferenciação entre eles. Não é difícil imaginar que os europeus se confundiram ao verem essa palavra, imaginando que ela se referia apenas às catapultas.
Durante a Dinastia Qing, os chineses passaram por um longo período de estabilidade e paz, e poucos avanços reais ocorreram na tecnologia e na governança do estado, deixando a imensa nação despreparada para os desafios no horizonte. Essa tranquilidade foi encerrada de forma abrupta nas Guerras do Ópio (1839-1842; 1856-1860), quando os chineses acabaram derrotados de forma humilhante pelos britânicos.
Nessa época, poucas unidades do exército Qing possuíam armas de fogo em bom estado, explicando parte da surra que eles levaram. Embora já existisse uma produção local de mosquetes, os chineses não conseguiam equipar os soldados como os britânicos, que já contavam com rifles de repetição. Em diversas batalhas os chineses tiveram de apelar aos arcos, e até mesmo às bestas de repetição (Zhuge-Nu, no idioma Mandarim); é possível que essa visão tenha surpreendido os britânicos, alimentando concepções erradas.
As Guerras do ópio foram um mero “aperitivo” diante dos terríveis desafios que seriam impostos aos chineses no século XIX: As intervenções estrangeiras atingiriam seu ápice em 1900, com oito nações se juntando para impor seus interesses sobre a desmoralizada Dinastia Qing. Nesse cenário de caos surgiu a Sociedade dos Punhos Justos e Harmoniosos, também conhecidos como “Boxers”; esses patriotas fanáticos enfrentaram os europeus com espadas e lanças, sofrendo outra derrota humilhante.
Vendo em retrospecto, o mito de que os chineses usaram a pólvora apenas em fogos de artifício deve-se a uma combinação de isolacionismo e preconceito. O atraso da China em comparação com outras nações no Século XIX e no início do Século XX também contribuiu para alimentar concepções errôneas.
6-Cemitério de Elefantes.
Nosso próximo mito baseado em evidências trata de uma teoria antiga entre os biólogos. Conforme essa teoria, os elefantes mais velhos eram capazes de reconhecer quando chegava a hora de morrer e se retiravam da manada, em nome da sobrevivência do grupo. Isso explicaria a razão de tantas ossadas desses imensos animais serem encontradas amontoadas próximas umas das outras, como se estivessem propositalmente no mesmo lugar.
Até hoje não foram encontradas evidências reais desse comportamento nos elefantes mais velhos, mas existem relatos que demonstram um interessante “respeito pelos falecidos” entre os membros dessa espécie. Em diversas ocasiões já foram vistos elefantes tocando ossos com as trombas e os analisando com cuidado, demonstrando respeito pelos restos mortais dos animais mortos, incluindo os falecidos que não fazem parte da família. Esse comportamento pode ter alimentado as lendas sobre os cemitérios de elefantes.
7-Princesas Resgatadas do Perigo.
Esse arquétipo mitológico faz parte da cultura popular há séculos, e parece ter várias origens distintas, de acordo com a época de quando se passa a respectiva lenda. Embora essa personagem seja vista como símbolo do “patriarcado”, a princesa em perigo reflete muitos aspectos de sociedades que passaram por evoluções constantes.
*Clique aqui para ver o galo lutando contra o falcão para salvar a vida da galinha:
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Antes de entrar nas lendas, é importante observar os aspectos biológicos que estão presentes em outras espécies, além da humana. Em quase todas as espécies, indo desde os leões aos galináceos, a defesa do bando e a proteção dos mais vulneráveis (fêmeas e filhotes) cabe aos machos. Com isto, o instinto de cuidado associado à agressividade já está em sua genética, e também em seus descendentes.
Existe uma associação das lendas sobre mulheres em situação de risco com o fim dos sacrifícios humanos entre as sociedades antigas, favorecendo os cultos onde a vida é protegida e valorizada. Tomemos como exemplo o mito de Andrômeda, e o resgate de Sabra por São Jorge: as duas princesas são oferecidas em sacrifício, para serem devoradas por monstros horríveis. O surgimento de um herói para resgatá-las de um destino funesto pode ser uma alegoria ao fim dos sacrifícios humanos.
Poderíamos passar horas falando de lendas similares vindas de lugares díspares, como a França, o Japão, a Rússia ou o Brasil, mas vamos falar do segundo aspecto social implícito no arquétipo. Na Idade Média, era comum capturar pessoas nobres, como forma de pedir resgate, e os “alvos” mais frequentes dessa extorsão eram cavaleiros derrotados em combate. Um dos reféns mais famosos dessa prática foi o rei João II da França, capturado pelos ingleses após a Batalha de Poitiers, em 1356.
Embora existam muitas lendas medievais sobre donzelas capturadas, são raros os casos reais de princesas e mulheres nobres que foram sequestradas na era medieval, dando a entender que essa conduta era recriminada, mesmo entre indivíduos acostumados a manter reféns. Os raptos de noivas também se tornaram menos comuns entre os europeus, conforme o interior se tornava mais seguro e menos vulnerável aos povos nômades e saqueadores vindos de terras distantes.
Uma triste exceção à regra foi uma condessa inglesa chamada Alice de Lacy, que foi sequestrada duas vezes, em 1317 e 1337. Por ser a herdeira do Condado de Lincoln, Alice caiu nas intrigas de famílias poderosas da região, e até mesmo o rei Edward III teve de intervir na questão, antes que a violência devastasse o Condado de Lincoln.
Falarei agora de dois casos reais de sequestro e resgate de jovens donzelas de sangue nobre: O primeiro deles ocorreu na distante estepe da Mongólia, em 1178, quando um guerreiro chamado Temujin teve de lutar contra a tribo dos Merkitas para salvar sua jovem esposa, Bortei. Esse mesmo guerreiro ficaria conhecido como Gengis Khan, e uma de suas primeiras medidas como líder supremo dos mongóis foi proibir os raptos de noivas entre os mongóis; a mesma regra não era aplicada às mulheres vindas de outros países.
Outro caso curioso ocorreu pouco depois da chegada dos europeus às Américas, na atual Costa Rica, em 1563, quando a irmã do rei dos Quepoas foi capturada pelos Coctui, um povo rival. A donzela se chamava Dulcehe, e seu resgate foi conduzido por um conquistador espanhol chamado Juan Vazquez de Coronado, que liderou o bando unido numa batalha terrível contra os Coctui. Dulcehe foi salva do cativeiro, mas não existem mais informações a respeito dela, após essa vitória espetacular.
Apesar de ser um arquétipo vindo de um passado longínquo, a donzela em perigo não sumiu na era moderna, pois o sequestro de noivas infelizmente ainda é prática corriqueira, especialmente nas regiões rurais. Um caso surpreendente é o Quirguistão, onde se estima que 1/5 das noivas foi sequestrada pelo futuro marido, ou por amigos dele. Neste país da Ásia Central, o costume é chamado de Ala Kachuu (literalmente, “Pega e Corre”), e se refere tanto aos sequestros como às fugas consensuais entre os noivos.
8-Maldição de Tutancâmon.
Seguimos agora ao Antigo Egito, para falar de um mistério que existe há milênios, porém apenas foi desenterrado (literalmente) no início do Século XX. O personagem principal dessa história de arrepiar foi o antepenúltimo faraó da Décima-Oitava Dinastia do Egito, e teve um reinado breve, embora cheio de realizações importantes.
Em seus nove anos de reinado, Tutancâmon restaurou o politeísmo no Egito, bem como as finanças arruinadas por seu antecessor, Akhenaton. Mas a fama de Tutancâmon hoje se deve muito à sua tumba, considerada a mais bem preservada da história do país. Por estar numa área mais isolada no Vale dos Reis, a tumba não foi vitimada por saqueadores e ladrões, diferentemente de outros mausoléus presentes na região.
Tutancâmon não foi deixado numa pirâmide, como seus antecessores, e sim dentro de um Hipogeu, espécie de câmara subterrânea. Apesar de pequeno, o local de repouso eterno do faraó surpreendeu a equipe de Howard Carter, o explorador britânico que descobriu o local em 1922. Armamentos, estatuetas, cálices, joias e outras maravilhas foram encontrados pelos arqueólogos, sem imaginarem o perigo que corriam...
Não demorou até que uma série de mortes começasse a desfalcar os envolvidos na expedição: O primeiro foi o financiador das escavações, George Herbert, apenas quatro meses depois da descoberta. O próximo azarado foi seu xará, George Jay Gould, que desenvolveu uma febre estranha e morreu um ano depois. Os alvos seguintes da onda de “coincidências” foram Arthur Cruttenden Mace em 1928, de pneumonia, e Richard Bettel, no ano seguinte, de um estranho sufocamento.
Em 1939, o próprio Howard Carter morreu de um tipo raro de linfoma, e o ocorrido trouxe de volta os rumores da Maldição de Tutancâmon. O descobridor da tumba negava acreditar em uma vingança sobrenatural, mas sempre afirmou buscar uma postura respeitosa diante dos mausoléus, por se tratarem da última morada de alguém. Em seu túmulo, Carter ordenou que fosse escrita uma frase presente no cálice de Tutancâmon: “Que o seu espírito viva milhões de anos, você que ama Tebas, voando sobre as estrelas”.
Antes de entrarmos na parte “científica” da Maldição do Faraó, vamos esmiuçar alguns detalhes interessantes: Não era incomum atribuir proteções divinas às tumbas durante os ritos funerários, mas nenhuma medida protetiva falava em amaldiçoar profanadores com desgraça e morte. Na época de Tutancâmon esse costume estava em desuso, mas isto não impediu o surgimento de lendas posteriores: os árabes medievais acreditavam que as pirâmides eram mal-assombradas, o que impediu maiores estudos sobre o Egito Antigo nessa época.
Explicações biológicas já foram atribuídas às mortes dos exploradores, quase todas apontando para um fungo no interior da tumba. Mais conhecido como Aspergillus Flavus, esse fungo está associado a problemas respiratórios, e podemos fazer uma associação com pelo menos duas mortes, de Mace e Bettel. George Jay Gould, por sua vez, morreu de uma picada de mosquito, que causou envenenamento de sangue. De resto, é possível que tudo tenha sido uma cruel e assustadora coincidência.
9-Bicho-Papão.
Um dos maiores arquétipos universais nas mitologias é a criatura horrenda que personifica o medo, sobretudo o medo da punição. Praticamente todos os povos do mundo contam histórias sobre monstros ou feiticeiros que castigam crianças (e às vezes até adultos) de forma severa, inclusive com a morte. O bicho-papão dos países lusófonos é apenas um em meio aos horrores noturnos da infância, que ainda contam com o velho do saco, o Bogeyman americano e o Krampus nos países europeus.
No Haiti, o mito do Bicho-Papão acabou virando realidade, da pior forma possível. Em 1959, o ditador François Duvalier criou a Milícia de Voluntários da Segurança Nacional, como forma de prevenir insurreições contra seu governo cada vez mais autoritário. O receio do tirano era plausível, pois no ano anterior ele sofreu uma tentativa de golpe, e receava deixar poderes nas mãos das forças armadas haitianas.
Diferentemente das forças armadas do Haiti e de outras polícias, a MVSN respondia diretamente a François Duvalier, atacando opositores do regime e fazendo-os desaparecer sem aviso. Não demorou muito para que a MVSN recebesse um nome condizente com suas atividades truculentas e criminosas: Tonton Macoute. O apelido significa “Bicho Papão” na língua Creole adotada no Haiti, e os milicianos assumiram de bom grado esse nome.
O auge do poder dos Tonton Macoute ocorreu entre 1960 e 1970, sob a direção de Luckner Cambronne, um dos subordinados mais brutais do regime. Quase todos os líderes dos Tonton Macoute praticavam Vodu ou feitiçaria, como forma de aterrorizar opositores, e Cambronne não era exceção. Histórias macabras afirmavam que um de seus maiores negócios era a venda de plasma sanguíneo, rendendo-lhe o apelido de “Vampiro do Caribe”.
Durante a década de 1980, os Tonton Macoutes enfraqueceram junto da cambaleante Dinastia Duvalier, mas os “Bichos-Papões” nunca sumiram de vez na caótica política haitiana. Muitas milícias e grupos paramilitares ainda impõem sua força nas regiões mais isoladas, inspirados pelos triunfos grotescos dos Tonton Macoutes. Um desses grupos foi o Exército Canibal, liderado por Buteur Métayer e responsável pela queda do presidente Jean Bertrand Aristide em 2004.
10-Atlântida.
Terminaremos essa lista com uma lenda que surgiu graças a um dos maiores filósofos da Grécia antiga, sobre uma misteriosa civilização perdida que nunca deixou o imaginário mundial. Até hoje a busca por Atlântida e outras terras perdidas fascina místicos, arqueólogos e curiosos em busca de um passado perdido.
As primeiras menções ao continente perdido (às vezes descrito como ilha) ocorrem em dois diálogos do ateniense Platão: Timeu e Crítias. Nas duas obras, a localização de Atlântida está além dos Pilares de Hércules (o que hoje chamamos de Estreito de Gibraltar), e sua capital se dividia em dez anéis concêntricos, governados pelos descendentes humanos de Poseidon, o Deus do Mar. A riqueza de Atlântida devia-se tanto à engenhosidade do seu povo quanto aos minerais escondidos em seu subsolo.
Depois de muitos séculos de paz e prosperidade, Atlântida se tornou um império expansionista, entrando em conflito aberto contra Atenas e outras cidades-estados gregas. Essa mesma guerra levou à destruição do continente/ilha; em apenas um dia e uma noite, Atlântida afundou no oceano após sofrer o impacto de maremotos e terremotos, enquanto os poucos sobreviventes emigraram para outras terras.
Antes de prosseguirmos nos detalhes da lenda, vamos aos aspectos “geológicos”: os cientistas modernos hoje reconhecem que a possibilidade de um continente desaparecer é real, mas isto se deve mais à subida das marés do que a um “afundamento”. Muitas terras desapareceram do mundo após o fim da Era Glacial, com o derretimento das calotas polares; um exemplo notável é Doggerland, um imenso continente que se localizava onde hoje existem as Ilhas Britânicas.
Em diversas culturas nós vemos lendas sobre formidáveis dilúvios que mudaram a geografia do mundo, como é o caso do Dilúvio bíblico, a luta do monarca chinês Yu contra as enchentes, ou a lenda tupi de Tamandaré. Essas lendas provavelmente foram inspiradas pelas consequências do fim da Era Glacial, quando boa parte do mundo “desapareceu” sob as águas, e não é difícil imaginar que Platão teve contato com alguma dessas histórias extraordinárias ao imaginar Atlântida em seus diálogos.
As buscas pela Civilização Atlante passariam por uma nova etapa com o advento das Grandes Navegações, instigando inúmeros aventureiros a procurarem por mais pistas e evidências. Nesse período os conquistadores espanhóis entraram em contato com os povos de linguagem Nahua do atual México, como era o caso dos Astecas e Tlaxcalas, e ouviram lendas sobre uma ilha perdida chamada Aztlán, de onde vieram os falantes Nahuas. A similaridade do nome ajudou na associação entre Atlântida e Aztlán.
Voltando ao continente europeu, mais pistas e evidências surgem em nossa busca por Atlântida, com base em civilizações que já existiram na região. Uma possível “candidata” foi a civilização minoica, que existiu na Ilha de Creta (falamos deles na lenda do Minotauro, em nossa lista anterior) e desafiou Atenas pela supremacia no Mar Egeu. Essa civilização mantinha uma poderosa força naval e desapareceu sem deixar rastros, assim como a Atlântida lendária; a causa mais provável do sumiço foi um terremoto ou maremoto.
Um evento contemporâneo pode ter influído na lenda de Atlântida: A erupção do Vulcão de da Ilha de Tera, ocorrida aproximadamente em 1450 AC. Localizada ao norte de Creta, Tera servia de posto avançado aos minoicos, e suas colônias foram abandonadas ou destruídas pela erupção, um desastre que arruinou o poder naval da civilização minoica, fazendo-a “desaparecer” do cenário local, assim como Atlântida. O formato de Tera também lembra vagamente os anéis que compunham Atlântida.
Esses são apenas alguns dos lugares propostos como a “verdadeira” Atlântida, e as possibilidades aumentaram nos anos seguintes às Grandes Navegações. Desde os Andes até as Ilhas do Pacífico, passando pelo Deserto do Saara ou o norte da Europa, o que não faltam são histórias de cidades e terras naufragadas, e até mesmo o Brasil tem a sua, chamada Sapucaia-Roca (falamos dessa aldeia-cidade na primeira edição das Lendas do Brasil). Podemos concluir que não existiu apenas uma Atlântida, e sim várias delas.
Texto escrito por Mateus Ernani Heinzmann Bülow.
Confira o texto da Parte 1:
10 Lendas e Figuras Fantásticas que Existem ou Existiram - Parte 1:
Mateus é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), escritor e colunista do blog "Recanto da Escritora".
*Mateus é autor de dois livros de fantasia que já foram publicados (disponíveis na Amazon):
Taquarê - Entre a Selva e o Mar
Taquarê - Entre um Império e um Reino
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