O Direito e as Princesas - A Ariel precisava de um advogado!
A Ariel precisava de um advogado!
No Dia das Crianças (12 de Outubro), aprenda Direito como uma criança! Com os olhos mais maduros de uma adulta e advogada, analisarei um filme da Disney sob a ótica do Direito brasileiro. Trata-se da interpretação jurídica do filme "A Pequena Sereia" (Animação infantil de 1989) baseado no Conto de Fadas do escritor e poeta dinamarquês Hans Christian Andersen publicado em 1837. Boa leitura!
Se todas as princesas da Disney contratassem um advogado, os seus problemas seriam resolvidos facilmente. Quase todos os vilões da Disney são criminosos (Madrastas prendem princesas em cárcere privado e cometem abuso emocional dentro da violência doméstica e a maioria dos bruxos é estelionatário) e alguns mocinhos também participam de tipos penais (Aladdin é um ladrão simpático e a Fera não deixa de ser uma sequestradora).
A bruxa Úrsula de "A Pequena Sereia" não deixa de ser uma estelionatária ou uma criatura fraudulenta. Sua conduta é semelhante à conduta criminosa descrita no artigo 171 do Código Penal (Estelionato). Todavia, a fraude que cometeu em relação à sereia Ariel também poderia ser enquadrada no artigo 173 do Código Penal (artigo que trata do abuso de incapazes), tendo em vista que ela tirou proveito da paixão de uma adolescente de 16 anos para prejudicá-la e obter lucro e poder no fundo do mar.
A bruxa do mar prometeu à Ariel que transformaria a sua cauda de sereia em pernas humanas se a garota concordasse em dar a sua bela voz para ela. No mundo humano, Ariel teria de beijar o príncipe dentro de três dias, senão voltaria a ser sereia e pertenceria à Úrsula para sempre. Úrsula induziu Ariel em erro, mediante ardil, a assinar um contrato (risos) sob a canção épica da Disney "Pobres corações infelizes".
Ocorre que Úrsula sempre agiu de má-fé, pois sempre foi a sua intenção atrapalhar Ariel no mundo humano para que ela não conseguisse beijar o príncipe. Úrsula não queria que Ariel triunfasse em seu objetivo, visto que ela queria que Ariel pertencesse a ela. Ariel foi enganada o tempo todo pela bruxa do mar diante de um contrato totalmente inválido.
Caso a princesa fracassasse no mundo humano e não conseguisse beijar o príncipe antes do pôr do sol do terceiro dia, Ariel seria transformada em uma criatura do mar e ficaria presa sob o domínio de Úrsula. Desse modo, a bruxa arrancaria o poder de Tritão, pai de Ariel e rei do mar. A principal intenção de Úrsula era usar Ariel para arrancar o poder e o tridente de Tritão, o qual teria de entregar o reino do mar o seu poderoso tridente para ela se quisesse libertar a filha do domínio mágico e malévolo da bruxa do mar.
Era evidente que Ariel fracassaria no mundo humano ao tentar confirmar o amor do príncipe num beijo de amor verdadeiro, tendo em vista que o príncipe havia se apaixonado pela voz dela e ela estava sem a voz no mundo humano. A bruxa realmente foi muito esperta: deu pernas humanas para Ariel, mas retirou-lhe o que havia de mais precioso e apaixonante em sua personalidade: a sua voz.
Em um naufrágio, a sereia Ariel salvou o príncipe Eric e cantou uma canção para o seu amado durante o resgate. O príncipe estava inconsciente nos braços da Ariel e somente se lembrava da sua belíssima voz, pois não conseguia se lembrar da fisionomia da princesa. A bruxa, ao furtar a voz da princesa, impediu o príncipe de reconhecer a sua amada. A bruxa inclusive fez um feitiço para transformar-se em uma mulher bonita e usar a voz da Ariel para seduzir o príncipe e afastá-lo de Ariel.
É claro que, na vida real, é impossível furtar ou roubar a voz literalmente de alguém através de um feitiço. Mas, hoje em dia, usamos a nossa voz para atividades profissionais e artísticas. Sabe-se que comunicadores gravam as suas vozes em "Podcasts" e cantores gravam as suas vozes em músicas. Os produtos nascidos da nossa voz são resguardados pelos direitos autorais, bem como a nossa própria voz recebe amparo legal do Código Civil como um direito personalíssimo e da Constituição Federal.
A história de Ariel, a sereia que teve a voz furtada por uma bruxa mediante ardil, é uma boa alegoria para explicar o direito à voz dentro do sistema legal brasileiro. O direito à voz nasce do fato de que cada pessoa tem uma voz perfeitamente diferente da outra, assim como ocorre com a impressão digital. Desse modo, o titular do direito à voz pode fazer o uso da voz para diversas finalidades -- econômicas ou não -- desde que respeite o disposto no artigo quinto, inciso XXVIII, alínea "a", da Constituição Federal.
Portanto, pode-se afirmar que a reprodução da voz humana é um direito resguardado pela Magna Carta brasileira:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:
a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
Além de estar resguardada pela Constituição Federal, a voz é um direito da personalidade importantíssimo. Os Direitos Personalíssimos estão no Capítulo II do Código Civil, visivelmente distribuídos entre o artigo 11 e o artigo 21 do Código citado. Esses direitos correspondem à tutela dos atributos humanos essenciais no livre relacionamento civil, representando situações jurídicas existenciais.
O nome desses direitos faz notória referência à "personalidade", tendo em vista que resguardam as características inerentes à pessoa e os atributos das suas projeções no relacionamento social. Sendo assim, os direitos personalíssimos correspondem à pessoa em si mesma além de resguardar a integridade de quem ela representa no meio social.
O objeto de proteção dos direitos personalíssimos abrange os atributos existenciais do ser humano, tais como integridade física, integridade psíquica (ou integridade psicológica) e integridade moral. Tudo o que faz referência aos atributos essenciais do ser humano está protegido pelos direitos da personalidade.
A dignidade humana está na raiz dos direitos personalíssimos, visto que ela representa não somente o valor fundamental que justifica moralmente os direitos da personalidade, mas também o fundamento normativo do sistema jurídico. Salienta-se que a dignidade humana é um princípio fundamental da República Federativa do Brasil de acordo com o inciso III do primeiro artigo da nossa Constituição.
A transmissão total da voz para outra pessoa seria um objeto inadmissível dentro de um contrato, razão pela qual o contrato entre Úrsula e Ariel é totalmente inválido. Salienta-se que, dentro do direito contratual, existem três planos: o plano da existência, o plano da validade e o plano da eficácia.
O plano da existência leva em consideração a declaração da vontade, as partes, o objeto e a forma. No plano da validade, a vontade precisa ser livre, as partes precisam ser capazes e o objeto necessita ser lícito, possível, determinado ou determinável. Logo, os Negócios Jurídicos que não apresentarem esses elementos de validade são nulos de pleno direito, exceto pelas hipóteses de nulidade relativa. No plano da eficácia, o Negócio Jurídico é analisado no plano social para percebermos se ele repercute juridicamente no plano social.
Qualquer contrato que Ariel assinasse teria nulidade relativa (poderia ser anulável), eis que a sua idade (16 anos) faz com que ela seja relativamente incapaz de acordo com o artigo quarto do Código Civil. Entretanto, o contrato que ela assinou ao transferir a sua voz para Úrsula é nulo de peno direito, visto que há a gravidade do caráter fraudulento da bruxa e a ilicitude e impossibilidade do objeto do contrato -- o direito à voz é um direito personalíssimo irrenunciável pela lei.
A exigência contratual de retirar a liberdade da princesa caso ela não conseguisse triunfar no mundo humano com o amor de seu príncipe também é ilícita e evidencia ainda mais a invalidade do contrato. Como já sabemos, a liberdade é um direito personalíssimo igualmente irrenunciável.
Além do mais, Úrsula é uma bruxa notadamente criminosa e fraudulenta. Dentre os tipos penas que ela poderia incorrer, dois artigos do Código Penal poderiam ser mais facilmente atribuídos à bruxa:
*Observação: Os artigos abaixo estão no Código Penal em seu capítulo VII -- Do estelionato e outras fraudes:
*Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
*Abuso de incapazes
Art. 173 - Abusar, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem, induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.
É claramente possível encaixar um desses tipos penais descritos acima na conduta fraudulenta de Úrsula. Como não é possível aplicar dupla punição pelo mesmo fato devido ao princípio do "ne bis in idem" do direito penal, não poderíamos encaixar os dois tipos penais no mesmo caso.
É preciso enquadrar cada fato em seu respectivo tipo penal. Um único fato não pode receber dupla punição nem ser enquadrado em dois tipos penais ao mesmo tempo, conforme o princípio do "ne bis in idem". É necessário aplicar o tipo penal mais conveniente e o que mais possui maior identificação com o fato.
É notório que o artigo 173 é o tipo penal mais adequado para a fraude da Úrsula, já que a bruxa abusou da paixão e da inexperiência de Ariel (menor de idade por ter 16 anos) para efetuar um contrato com ela e prejudicá-la. O artigo 173 é mais aplicável ao caso que o artigo 171.
Além do mais, a pena do artigo 173 é ainda mais grave: enquanto o artigo 171 expressa uma pena de reclusão de um a cinco anos, o artigo 173 expressa uma pena de reclusão de dois a seis anos. Os dois artigos têm a previsão da aplicação de multa além da reclusão.
Portanto, um advogado era tudo o que Ariel precisava. O direito é a maior magia que existe: ele é o instrumento que desmancha os "feitiços" obscuros dos crimes e das fraudes e aplica a clareza da justiça. Para o Direito, Úrsula mereceria a prisão e Ariel poderia ser feliz para sempre com o seu corpo, a sua voz, a sua liberdade e o seu príncipe.
No filme, Úrsula acaba morta pelo príncipe Eric (uma típica legítima defesa descrita pelo artigo 25 do Código Penal, diga-se de passagem...), o qual espeta a parte da frente de um barco no corpo dela para defender-se de um ataque da bruxa. Contudo, para o Direito, a bruxa teria de enfrentar de dois a seis anos de prisão além de pagar multa.
Que os injustos paguem pelos seus crimes! E que os justos vivam felizes para sempre! A infância ensina que a vida pode ser um conto de fadas quando seguimos o que é bom e justo. Quando somos adultos, passamos a ver injustiças, "bruxas" e "dragões" espalhados por aí. Felizmente, com a espada da deusa da justiça podemos "matar" os "dragões" e, com a sua balança, podemos defender o discernimento e o equilíbrio.
Quando eu era criança, eu sonhava com um mundo justo e agradável. Hoje sou adulta e luto por um mundo justo. Ser adulto não é entregar os nossos sonhos para a decepção da realidade, mas lutar por uma realidade melhor. Ser criança é sobre sonhar. Ser adulto é sobre lutar pelos nossos sonhos.
Tatyana Casarino. Advogada, Especialista em Direito Constitucional, escritora e poetisa.
Gostaram da "brincadeira"? Acharam difícil analisar juridicamente um conto de fadas ou tudo foi fácil como uma brincadeira de criança? Podem deixar os seus comentários nessa postagem. Também aceito sugestões para analisar juridicamente outros filmes, incluindo Animações e Contos de Fadas.
Para quem é da área jurídica, sugiro um exercício: analisar juridicamente as injustiças sofridas pelos personagens dos seus filmes e séries favoritos. Já pensou se você pudesse advogar para um personagem da ficção? Quem você defenderia? Eu seria a advogada da Pequena Sereia (risos)!
Tatyana Casarino.
Bibliografia:
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 12. Out. 2020.
BRASIL. LEI N. 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm> Acesso em: 12. Out. 2020.
CASARINO, Tatyana Alcantara Fernandes. Os direitos humanos e fundamentais das minorias sociais no estado democrático de direito: desafios jurídicos diante da globalização contemporânea em uma perspectiva transdisciplinar. Monografia apresentada à Faculdade de Direito de Santa Maria, 2014.
CASARINO, Tatyana Alcantara Fernandes. A constitucionalização do direito civil expressa através dos direitos da personalidade e os impactos da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Monografia apresentada à Faculdade Damásio Educacional de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional Aplicado. Fortaleza, Ceará. 2016.
SENISE, Roberto Lisboa. Direito civil de A a Z. Barueri, SP: Manole, 2008.
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