Há alguns dias eu estava deitada na cama ouvindo Rachmaninoff e lendo Schopenhauer num êxtase introspectivo e filosófico profundo (alguns dirão que isso é coisa de nerd hehehe) e descobri, num despertar quase divino, o que é a Realidade.
Olhei para os móveis ao redor de minha cama e para a janela do meu quarto, a qual é o meu portal para o mundo exterior, e senti que simplesmente o mundo é uma ilusão total. Os meus olhos se arregalaram, a minha boca ficou espontaneamente aberta como se eu tivesse levado um tremendo susto ou acordado depois de muitos anos em sono profundo. As sensações dentro de minh'alma eram complexas e variadas: melancolia existencial misturada com felicidade intelectual, ceticismo diante da vida aliado à fé esclarecida, entusiasmo fogoso ao lado de uma paz inefável e várias outras sensações indescritíveis.
Olhei para o espaço como se o espaço fosse o tempo, olhei para o tempo como se o tempo fosse o espaço. Simplesmente, as coisas "reais" ao redor de mim tornaram-se irreais, o que era certo ficou incerto e o que era sólido tornou-se líquido. Da ordem surgiu o caos, mas do caos brotava a ordem. O visível tornou-se invisível, o invisível ficou visível num tremendo paradoxo caótico, onde nada ficou real, exceto os meus próprios olhos.
Tudo ao meu redor começou a derreter como numa pintura surrealista. E eu simplesmente acordei para o Real dentro de mim. Efeito Eureka! Ouvi os sinos de Notre Dame a chacoalhar os meus ossos! Puxa! Eu vou morrer um dia! Parece algo tão óbvio: constatar o que há de mais certo na vida que é a nossa mortalidade. Não é nada genial: todo mundo sabe que vai morrer. Todo mundo sabe, mas esconde de si mesmo, vive a ilusão da vida, corre atrás de dinheiro, corre atrás dos padrões estéticos, acumula futilidades, sente-se equivocadamente invicto, acha que nunca vai morrer e que a velhice está num lugar tão longe.
Falar de morte na juventude é sinônimo de morbidez, loucura, maturidade precoce ou melancolia inadequada. Mas, não há nada mais genial que retirar o véu da ilusão dos olhos. Quando os olhos se voltam para dentro de nós mesmos e depois retornam para fora, como quando ocorre no sono profundo seguido do Despertar, há uma vida tridimensional que passa a ser vista.
Não sou nada além de uma carne fadada a apodrecer um dia, isto me faz tão pequena, tão humilde, tão realista. No entanto, há um sopro dentro de mim, um sopro que me faz andar, enxergar, ouvir, falar, cheirar, respirar, saborear, sentir, rir, chorar, pensar, orar, amar e viver. Tal sopro me faz ser grande, especial e eterna como o manancial de onde Ele veio.
Tudo se deteriora, menos esse sopro, tudo morre, exceto esse sopro, tudo é ilusão a não ser esse sopro. Somente o que vive dentro de mim é real, todo o resto é ilusão. Não se trata de egocentrismo, pois o egocentrismo é quando o orgulho e a vaidade (dois elementos da ilusão e não da realidade) fazem o mundo girar em volta do umbigo. O egocêntrico acha que o mundo gira em torno dele, o sábio, no entanto, sabe que ele não é o centro do mundo embora saiba que o seu ser é um mundo particular que gira em torno do Grande Sol assim como os planetas e as estrelas giram em torno do sol.
Trata-se de despertar, pois você descobre que é uma cópia do mundo. Somos todos um mundo particular, uma estrela girando em torno da Grande Estrela. Deve ser por essa razão que os sufis, integrantes de uma corrente mística do islamismo, sentem uma espécie de êxtase interior e espiritual durante a dança giratória efetuada durante a declamação de poemas místicos ( a maioria deles foram escritos pelo poeta e mestre espiritual Rumi).
Sabe-se que os sufis representaram um lado alternativo do Islã. A preocupação exclusiva com as leis religiosas perdeu sua legitimidade estritamente dogmática, pois o essencial passou a ser o êxtase místico. "Quem conhece a si mesmo conhecerá Deus", afirma um antigo provérbio sufi. Outro ditado: "Um só minuto pensando sobre Deus vale mais que mil anos de orações". Para os sufis, só Deus é real - o mundo que nos cerca é sonho e ilusão. Para se aproximarem da realidade verdadeira, muitos dervixes se retiravam para os desertos, vivendo como eremitas ou em pequenas comunidades.
O próprio cristianismo também prega acerca da ilusão do mundo e da importância de um olhar mais profundo para a verdadeira vida. Para a Religião Católica, a verdadeira vida, ou seja, a realidade, é a vida com Deus, em Deus, a vida espiritual. A carne e o mundo exterior representam apenas ilusões efêmeras. Por isso, para lapidar a nossa alma que é tão voltada às ilusões, é preciso que o Espírito Santo propicie a graça de vir até nós e derramar a sua luz em nossa vida para que sejamos puros de coração. Assim, o catolicismo prega a "mortificação" das ilusões, da carne e do ego. A mortificação é vista pela teologia católica como uma forma de ascetismo, um meio de ajudar as pessoas a viver de forma virtuosa.
Os evangélicos falam muito do conflito entre a Verdade X o "mundo". Para eles, o mundo é contaminado pelo pecado e a vida Real está contida nas palavras de Jesus Cristo. Cristo é a única realidade, pois é o caminho, a verdade e a vida. Desse modo, o cristão deve vencer o mundo para receber a glória de Deus. Por tal motivo, teria afirmado Jesus: "Referi-vos essas coisas para que tenhais a paz em mim. No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo!"
O Budismo também nos ensina acerca do conflito entre ilusão e realidade. Para eles, o nosso ego está carregado de ilusões e, para ascender no caminho espiritual, é preciso limpar a nossa mente dos pensamentos negativos e purificar-nos diante das ilusões do mundo através da meditação. O recolhimento, a meditação, o olhar contemplativo e o cultivo do contato com nosso mundo interior são os modos para obter um espírito calmo, purificado e livre das amarras das ilusões, dos desejos e dos maus pensamentos.
O sofrimento, conforme o budismo, deriva do desejo pelas coisas passageiras da vida material. Libertar-se das amarras da ilusão é alcançar o nirvana, um estado de paz inefável que independente das circunstâncias exteriores.
Não obstante, não é necessário pertencer a alguma religião para a percepção de que a vida é uma ilusão. A morte, por si só, já torna a nossa vida uma ilusão. A mortalidade e a finitude da vida mostram ao ser humano o quanto a vida é pequena, frágil e repleta de ilusões, as quais um dia perderão o sentido. Acreditando ou não que há outra vida no além-túmulo, a "verdadeira vida" aguardando nosso espírito, o fato é que a vida é uma ilusão. Os próprios céticos admitem a fragilidade da vida, e a melancolia existencial dos ateus provém da falta de sentido que a mortalidade proporciona ao ser humano. "Qual o verdadeiro sentido da vida?" é uma das indagações mais antigas e perenes do mundo da filosofia.
Para a filosofia de Arthur Schopenhauer, o mundo que percebemos é uma construção mental, visto que os nossos sentidos recebem comprimentos de ondas do mundo exterior, e então nosso cérebro (entendimento) trabalha para traduzi-las em cores, formas e etc. O mesmo ocorrendo com os sons e a percepção do tato. Contudo, tal construção não se dá de forma aleatória e desordenada, ela tem como a priori três fatores do entendimento: Espaço, Tempo e Causalidade. O espaço e o tempo são como "óculos do entendimento" através da qual percebemos o mundo. Já o mundo "fora de nossas representações cognitivas" ou "mundo exterior" seria a Vontade.
Sendo assim, de acordo com tal filosofia, não há distinção entre Sujeito (ser que percebe) e objeto (Vontade representada), pois o próprio sujeito, seu corpo, seus pensamentos e sentimentos também são Vontade objetivada. A Vontade atinge seu mais alto grau da consciência humana, quando então ela pode contemplar a si mesma como representação, pode ver a si mesma como num espelho.
Todavia, o ser humano não percebe esse processo, pois ele acredita ser, devido à limitação dos sentidos, individualizado e independente do mundo, um ser autônomo. Como a Vontade é destituída do princípio de Razão, é criada a ilusão de que cada ser humano, ou animal, é uma vontade particular, em luta com outras vontades, uma luta incessante que culmina sempre em sofrimento, tema recorrente na filosofia de Schopenhauer. Para superar o sofrimento é necessário o reconhecimento de que há somente uma Vontade, independente, livre e essência do Universo. Há a mesma Vontade em um leão, num ser humano ou numa pedra.
Tais conceituações diminuem um pouco o famoso "pessimismo" de Schopenhauer, na medida em que abre a oportunidade de cada ser libertar-se das amarras da Representação. A essência da realidade (Vontade) é o próprio cerne do sujeito, o ser humano, então, leva dentro de si a chave que lhe permite ver a unidade dos fenômenos. Para esse objetivo, o ser humano deve contemplar a si mesmo, reconhecer-se como Vontade e notar que sua vida é apenas uma sequencia de fenômenos representados que nada tem a ver com a essência do Ser.
Por sua vez, o filósofo ateísta e existencialista Jean-Paul Sartre afirmava que a existência precede a essência, pois o homem primeiro existe, depois se define, enquanto todas as outras coisas são o que são, sem se definir, e por isso sem ter uma "essência" que suceda à existência. Sartre divide o que povoa o mundo em "Em-si" e "Para-si". O modo de ser do Em-si representa todos aqueles objetos , que não possuem consciência, ou seja, que não se fundam na alteridade, na presença do outro. Um ser Em-si não tem potencialidades nem consciência de si ou do mundo. Ele apenas é.
A consciência humana, no entanto, é um tipo diferente de ser, por possuir conhecimento a seu próprio respeito e a respeito do mundo. É uma forma diferente de ser, chamada Para-si. É o Para-si que faz as relações temporais e funcionais entre os seres Em-si, e ao fazer isso, constrói um sentido para o mundo em que vive.
O existencialismo de Sartre desconsidera a existência de um criador que tenha predeterminado a essência e os fins de cada pessoa. É necessário que o Para-si exista, e durante essa existência ele define, a cada momento o que é sua essência. Cada pessoa apenas tem como essência imutável aquilo que já viveu. Assim, pode-se saber que o que fui se definiu por algumas características ou qualidades, bem como pelos atos que já realizei, porém tenho a liberdade de mudar minha vida deste momento em diante. O centro da vida passa a ser o homem e as suas escolhas. Por isso, a angústia existencialista de sentir a paradoxal "prisão da liberdade", onde as minhas escolhas me definem.
Eu discordo em alguns pontos do existencialismo de Sartre. Acredito que há um criador e que nossas potências inatas e dons propiciados por Ele determinam nosso rumo, nossa vocação, nossa forma própria de girar em torno do Sol como tem cada estrela do universo em suas próprias galáxias, reverenciando seu "sol". Temos um lugar "marcado" no universo e não podemos fugir das nossas condições fundamentais de vida (lugar que nascemos, família, época, contexto cultural e etc). Não tivemos liberdade para escolher a data do nosso nascimento e não teremos escolha diante do dia certo para nossa morte. Há certas coisas que são frutos do "destino" e não das escolhas. Sim, eu acredito em destino. Pode ser pueril para alguns tal crença, mas há uma certa lógica.
Uma pessoa que nasceu com o dom de tocar piano será, invariavelmente, pianista. É claro que as condições financeiras para estudar música e o incentivo para tal estudo vão ajudar no seu desenvolvimento. Mas, há talentos que são inatos. Não escolhemos nossos dons. Se nasci com o dom da escrita, não tenho a liberdade de simplesmente trocar este dom pelo dom da pintura, por exemplo. Agora, o que farei com esse dom? Aí sim é um problema existencial meu e depende de meu livre-arbítrio.
É como se nossas potencialidades fossem virtudes inatas, uma espécie de "bússola" propiciada por Deus. É só observar a natureza. Tudo na natureza é determinado. O rio está fadado a morrer e a se "transformar" em mar. Os pássaros estão destinados a voar, os peixes a nadar e as flores a encantar. No entanto, o ser humano costuma perder-se justamente pela sua capacidade de pensar. Como seres racionais, idolatramos a razão e desconectamos nosso ser dos nossos instintos. O excesso de razão atrofiou nossos sentidos e trouxe ao nosso século um ceticismo frio e a perda de conexão com o sentido da vida.
Já percebeu que tem certas coisas que "fluem" com facilidade em nossas vidas e outras que "empacam" (utilizando linguagem bem popular) como o Rio Amarelo da China que pela ausência de afluentes acaba antes de chegar ao mar? Posso ser livre para escolher os caminhos que vou seguir, mas não sou livre para escolher as circunstâncias, pois elas serão favoráveis ou desfavoráveis independentemente do meu desejo.
Se uma determinada planta precisa de bastante luz para sobreviver e se desenvolver e eu resolver plantar tal espécie em um lugar de sombras, ela não sobreviverá por muito tempo. Cada ser tem um lugar próprio para se desenvolver. Assim são as plantas, os animais e também os seres humanos.
Até mesmo quando estamos trilhando o nosso caminho, seguindo nossa intuição, cumprindo nossa missão, encontramos pedras no caminho, obstáculos necessários e até saudáveis para o nosso desenvolvimento. Como a poesia do Drummond diz: "No meio do caminho tinha uma pedra". Imagine, então, quando estamos trilhando o caminho errado: tudo começa a acontecer de mal para a pessoa que está no lugar errado e na hora errada. Eu acredito no alinhamento do universo com a alma humana.
Como é angustiante não saber tomar decisões, sentir que está nadando contra uma correnteza, sentir que todas as circunstâncias desfavoráveis estão alertando nossa alma sobre a inadequação daquele determinado caminho para nós. Não podemos abraçar o mundo, temos uma missão única. Existencialista ou determinista, religioso ou ateu, jovem ou velho: todos experimentam a angústia humana de querer "acertar" sempre o melhor caminho.
Em um ponto eu concordo com o existencialismo de Sartre: o ser humano é capaz de construir a sua realidade. De certa forma, até mesmo quem crê em Deus ou destino sabe da importância do livre-arbítrio e de nossas escolhas. A realidade externa é uma ilusão, toda realidade não passa de uma construção interna, da maneira como enxergamos a vida.
Quando eu estava deitada na cama ouvindo Rachmaninoff e lendo Schopenhauer num êxtase introspectivo e filosófico profundo (hehehe), eu tive essa sensação: a de que o mundo e as coisas ao meu redor não eram reais, mas eu era a realidade. Os meus olhos e o meu pensar sobre tudo em volta de mim tinham o poder de dar identidade aos objetos.
Através de meu livre-arbítrio, eu escolhi olhar as coisas com mais naturalidade e a sair de minhas ilusões e complexidades filosóficas. Vi o óbvio, e o óbvio ardeu em minha alma. Senti a alma despida, enganada por todos aqueles objetos, enganada pela vida, desiludida e, ao mesmo tempo, amadurecida. Senti-me cega como se uma venda cobrisse os meus olhos e que, de qualquer modo, Deus ainda não permite aos mortais ver a verdadeira realidade. Senti que a vida ainda é muito escura e que tudo ainda não passa de ilusão. Sigo procurando a luz incansavelmente e sei que um dia vou encontrar a luz.
"Realidade quem és tu?" Perguntei-me. Mas ainda que tu te escondas de mim, vou construir minha própria realidade com meus olhos. Exercito os meus olhos para que eles sempre enxerguem o lado bom de tudo: das coisas, das situações, das adversidades, das lições e das pessoas.
E você, leitor, como exercita os seus olhos para ver a realidade? Está acostumado a ver sempre o lado negativo ou se concentra e busca a luz? Não falo de olhos físicos, pois há deficientes visuais que enxergam o mundo melhor que muita gente. Todavia, há pessoas que tem a visão física perfeita, mas a alma cega e iludida. Há pessoas com limitação visual que veem com perfeição tudo aquilo que não vemos: a luz, a beleza e a bondade. O que você vê da "realidade" tal como ela se mostra?
Texto escrito por Tatyana Casarino.
Para refletir, termino a postagem com as seguintes frases:
"Não procure fora, mas dentro de você, é no interior do homem que habita a verdade. "
Santo Agostinho
"Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta."
Carl Jung
Pra quem quiser escutar Rachmaninoff, um compositor, pianista e maestro russo, um dos últimos grandes expoentes do estilo Romântico na música clássica europeia, que foi citado no texto, deixo o vídeo do YouTube com suas músicas e link abaixo:
Tatyana Casarino
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