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domingo, 19 de fevereiro de 2023

Análise do filme Cassiopeia por Mateus Bülow

 

Cassiopéia O Filme.

 



 

“Ateneia é um planeta pacífico na constelação de Cassiopéia. Seus habitantes vivem em perfeita harmonia e sua defesa é fornecida por forças-tarefas enviadas pelo Conselho Galático Central...”.

 

          Com essa introdução ligeira, inicia-se um filme brasileiro animado de ficção científica que poderia ter feito história em 1996, porém não foi longe devido a uma série de fatores estranhos. Dirigido e roteirizado pelo animador Clovis Vieira, Cassiopéia (não usarei o sufixo “O Filme” a partir de agora) foi um projeto ambicioso desde o início, e tropeçou na própria expectativa, na pressão de seus produtores, e em decisões equivocadas que prejudicaram a divulgação nos cinemas.

          Quase todas as análises disponíveis na internet passam mais tempo falando dos percalços da produção do que da própria história, então serei breve nessa etapa: na época, havia uma corrida entre a Pixar e a NDR Filmes, responsável por Cassiopéia. Ambos os estúdios de animação queriam fazer o primeiro filme longa-metragem de computação gráfica da história; os membros da NDR Filmes até acusaram os americanos de realizarem “sabotagens”, porém nunca apresentaram provas.

          Diga-se de passagem, não podemos botar toda a culpa nos estrangeiros pelo resultado fraco de Cassiopéia, pois a produção cometeu erros gravíssimos na distribuição. Um dos equívocos foi lançar o filme nos cinemas no mesmo dia do início das Olimpíadas de Atlanta (curiosamente, a mascote das olímpiadas de 1996 se parecia com os bichinhos que aparecem em Cassiopéia). Num balanço geral, vemos que Toy Story sai com vantagem em inúmeros aspectos, especialmente a história.

          Mas e qual é a história de Cassiopéia? Basicamente, o planeta Ateneia é atacado por uma força misteriosa que vai consumindo lentamente a energia de seus habitantes, todos eles robôs. Uma astrônoma chamada Lisa (erroneamente descrita como a princesa de Ateneia em algumas análises disponíveis na internet) manda um pedido de socorro, que é interceptado pelos robôs Chip, Chop, Feel e Thot. Agora os heróis guardiões precisam defender Ateneia contra o pirata espacial Comandante Shadowseat e sua frota de combate.

          Como vocês perceberam no parágrafo acima, a história é bem simples e até lembra o filme da Turma da Mônica – A Princesa e o Robô (neste blog existe uma análise do mesmo autor). Embora eu conhecesse Cassiopéia há mais tempo, meu primeiro contato com a história foi via Youtube, onde o filme foi disponibilizado pelo próprio Clóvis Vieira. Apesar de alguns méritos na produção, existem problemas sérios na narrativa e nos personagens, e vamos vê-los de perto. Afivele o cinto, e prepare-se para viajar pelo espaço!

 

Pontos positivos:

 

1-A Computação Gráfica é Datada, mas não chega a incomodar (muito).

 



 

          Nas palavras de Clóvis Vieira, produzir Cassiopéia foi como “tirar leite de pedra”, devido às limitações dos computadores da época, já arcaicos e defasados em comparação com as máquinas disponíveis aos produtores da Pixar no mesmo período. Os cenários dos planetas visitados pelos heróis não possuem maiores atrativos, mas os personagens se salvam em meio ao quase “primitivismo” do CG brasileiro.

          Um detalhe interessante à primeira vista é a ausência de pernas nos personagens, o que provavelmente foi uma escolha prática, não estética. Temos os robôs voadores (parecidos com o Robozinho herói da Princesa e o Robô, aliás), além de autômatos com rodas, sem contar os alienígenas a serviço de Shadowseat, parecidos com vermes ou lesmas se arrastando no chão. Esse ponto chama a atenção, pois é raro vermos histórias de ficção científica com os robôs no papel dos mocinhos, enquanto seres orgânicos são os antagonistas.

 



 

          Apesar dos heróis e dos habitantes de Ateneia serem todos robôs, os designs deles possuem algumas diferenças: Chip é baixinho e alaranjado, Chop é mais gordinho, enquanto Lisa possui brincos nas laterais da cabeça para diferenciá-la como uma garota. Os movimentos deles parecem mais lerdos em comparação com as produções modernas de computação gráfica, mas cumprem seu papel ao representar as ações dos personagens.

 

2-O Comandante Shadowseat e sua Trupe.


 


 

          Os invasores aparecem logo no início, e provavelmente são os melhores personagens, ou ao menos os integrantes mais coerentes da trama. Shadowseat não é um vilão memorável, mas ele funciona num filme infantil, na posição de ameaça a ser combatida a todo custo. Com exceção de Shadowseat, cujo nome poderia ser traduzido no português para “Trono Negro”, nenhum membro da tripulação possui nome próprio, e apenas suas posições hierárquicas são indicadas, tais como Capitão e Engenheiro.

          Uma cena interessante ocorre quando um soldado raso de seu exército revela que o Capitão omitiu trechos do relatório sobre as cápsulas enviadas por Lisa ao espaço, rendendo-lhe punição e demoção do cargo. Ao tentar se aproveitar da situação em benefício próprio, o soldado é repreendido por Shadowseat, que o chama de desleal por entregar seu superior hierárquico, e ainda o ordena a considerar-se “devidamente recompensado” por não sofrer o mesmo destino do Capitão.

          Em comparação com outros vilões da ficção científica, Shadowseat é mais focado em seus objetivos, pois ele não deseja dominar Ateneia ou o universo, e sim roubar a fonte de energia do planeta e sumir o quanto antes. O sinistro comandante espacial também dá ordens expressas aos seus pilotos para não causarem danos em construções civis, pois isto atrairia as frotas do Conselho Galático Central.

 

3-Leonardo, o Cientista.

 



 

          Numa das etapas da viagem, os patrulheiros intergalácticos necessitam pousar em um planeta onde a população ainda não desenvolveu a viagem interplanetária, e precisam usar rodas para se parecerem com os nativos. Nesse mesmo planeta eles encontram o robô Leonardo e uma criatura formada apenas por um par de olhos azuis, chamada Galileu; os personagens são duas referências óbvias aos cientistas do Renascimento italiano, Leonardo da Vinci e Galileu Galilei.

          Leonardo revela aos patrulheiros que parte da população de seu planeta já sabe da existência de outros seres, antes de entregar a cápsula perdida a eles. Mais tarde, Leonardo aparece em Ateneia com uma frota de espaçonaves construídas com sucata, usando como base uma “engenharia reversa” obtida na cápsula.

 



 

          Parte da diversão desse personagem está na forma como ele fala, parecendo um locutor de futebol ao retratar as jogadas. O cientista ainda solta tiradas como “esse outro não consegue nem assustar bebezinho” ou “vamos brincar de fotografia, olha o passarinho!”, deixando-o parecido com um “tiozão” ao falar.

 

4-O Visual das Naves.

 



 

          Se o visual dos personagens e dos cenários não é grande coisa, ao menos as naves se salvam em suas aparências distintas. Elas vão desde a nave principal utilizada pelos quatro heróis, que é capaz de se dividir em duas, até os caças espaciais verdes em formato de escorpião usados pelos capangas de Shadowseat.

          Um trecho que eu achei engraçado ocorre no momento em que os heróis precisam abandonar a nave, após a mesma ser atingida por muitos asteroides de uma só vez. O “bote salva-vidas” deles trata-se de uma versão menor da própria nave, como se fosse um brinquedo ou réplica. Os robôs ficam pequenos, entram na réplica, e depois da fuga a nova espaçonave volta ao tamanho original, bem como seus tripulantes. É tão ridículo que eu dei risada!


 


 

          Perto do final da aventura aparecem mais naves de combate criadas por Leonardo e com um visual rústico, parecidas com engenhocas Steampunk (se quiser saber mais sobre esse gênero, procure o texto sobre os Gêneros e Estéticas da Fantasia e Ficção Retrofuturista, do mesmo autor). As batalhas entre as naves são “lentas”, devido às já citadas limitações do CG utilizado, mas cumprem seu papel na história.

 

5-A Trilha Sonora é muito Boa.







 

https://www.youtube.com/watch?v=VwtVQxT2m2g

 

          Quase todas as músicas são trilhas incidentais parecidas com as utilizadas em séries clássicas de ficção científica. A exceção é essa música de Sylvinha Araújo, que toca no meio da aventura, quando tudo parece perdido. É impossível não se lembrar das músicas da Princesa e o Robô nessa etapa.

 

6-A Dublagem.

 



 

          Parte do charme de Cassiopéia está na dublagem competente, contando com nomes consagrados na época, alguns já falecidos. Os melhores deles são Jonas Mello interpretando o Comandante Shadowseat (é incrível como esse dublador fez quase todos os vilões de filmes animados até a década de 1990) e Osmar Prado como Leonardo. Rosa Maria Barolli (Lisa), Cassius Romero (Chop) e Marcelo Campos (Chip) também fizeram um bom trabalho.

 

Pontos negativos:

 

1-História Arrastada e sem maiores Atrativos.

 



          Apesar do pioneirismo e inovação, é inegável que Cassiopéia falha miseravelmente no que deveria ser o principal objetivo de um filme, seja ele animado ou não: contar uma história interessante. Certos trechos deixam subscrito que a limitação técnica foi responsável pela estruturação da trama, e eu imagino que deixar a produção e roteirização nas mãos de Clóvis Vieira também prejudicou o andamento, sobrecarregando-o em dois aspectos dependentes de habilidades distintas.

          Cassiopéia tem duração aproximada de uma hora e vinte minutos, o que não é muito longo em se tratando de animações, mas a história se arrasta como uma lesma aleijada, tão burocrática quanto uma repartição pública. Os quatro heróis não aparecem juntos antes da primeira meia hora do filme, e precisam encontrar todas as cápsulas enviadas por Lisa, antes de partirem ao resgate de Ateneia. Antes disso, Chip e Chop ainda necessitam derrotar outro bicho esquisito, numa luta que dura mais tempo que o necessário.

          Esse ponto, aliás, eu considero a maior fraqueza do filme: os heróis e os vilões estão procurando por Ateneia durante quase toda a segunda metade da aventura, e isso apenas serve para enrolar ainda mais a história. As aventuras espaciais de Chip, Chop, Feel e Thot até que são divertidas, passando pelo planeta de Leonardo, por cinturões de asteroides e um buraco negro (bisonhamente chamado de “ralo dimensional” por Chop), mas poderiam ter encurtado alguns trechos.

          Outro detalhe que incomoda é ver os heróis quase sempre lidando nos computadores e conversando entre si, o que é algo bem chato para uma criança; afinal de contas, eles são patrulheiros intergalácticos, ou funcionários de uma empresa de tecnologia? Quase todos os diálogos soam tediosos, protocolares e vazios, e ninguém parece “falar” de verdade, apenas explicar coisas e mais coisas. Isso até faz sentido em se tratando de robôs, mas também deixa a história sem graça.

 

2-Interação quase Nula entre os Personagens.


 


 

          Esse ponto tratará de revelações no enredo, assim como os trechos seguintes, então leia por sua conta e risco. Aos cinquenta minutos de filme, os quatro heróis finalmente encontram Ateneia, enquanto os vilões preparam uma invasão. Infelizmente, o tédio dos momentos anteriores já apagou qualquer expectativa.

          Nessa altura do campeonato, o espectador já não está mais interessado em nada, porque os personagens não demonstram entrosamento. Mesmo entre os quatro heróis é difícil enxergar algo parecido com amizade ou companheirismo, exceto entre Chop e Chip, os únicos membros da equipe que estão realmente arriscando a própria pele (ou os fusíveis) contra a frota de Shadowseat.

          Os leitores provavelmente imaginam que Lisa terá uma grande importância nessa etapa da batalha por Ateneia. Eu digo que sim e não ao mesmo tempo, por razões bizarras. Depois dos vinte primeiros minutos, Lisa não acorda em momento algum, parecendo uma “Bela Adormecida” durante todo o restante da aventura. Isso até Galileu fazer uma magia doida que auxiliaria os heróis, porém selaria o destino da astrônoma.

 

3-Ciência um tanto Convoluta.


 


 

          Vocês se lembram de quando eu comentei sobre os diálogos serem explicações em cima de explicações? Pois bem, isso se deve a um detalhe bizarro do universo ficcional de Cassiopéia: além de viajar pelo espaço sideral, as naves dos heróis e vilões também atravessam dimensões temporais. Isso até parece interessante num primeiro momento, mas também traz mais questionamentos: como os vilões não sabem a dimensão onde está Ateneia, e mesmo assim conseguem sugar a energia deles?

          Praticamente tudo é descrito pelos personagens, mesmo quando não há necessidade de maiores explicações. Um exemplo ocorre quando os quatro heróis partem em sua jornada na busca pelas quatro cápsulas; bastaria apenas mostrar as naves realizando os procedimentos necessários, mas eles precisam falar coisas do tipo “iniciando o processo de acoplamento”, “iniciando impulsão magnética”.

          Entre todas as ocorrências estranhas em Cassiopéia, nada supera o que acontece com a Doutora Lisa: a robozinha literalmente se transforma numa lua, e assim o planeta Ateneia consegue absorver mais luz para recuperar a energia de seus habitantes, além de alimentar um raio para destruir a máquina absorvedora de energia dos vilões. Como é possível um ente mecânico se transformar numa lua? Nas palavras de Leonardo: “Segredos aqui do Galileu”. E se você não entendeu, azar o seu (até rimou)!

          Devo dizer que a produção foi corajosa ao mostrar o sacrifício de uma personagem importante à trama, e Leonardo até fez uma pintura em homenagem à astrônoma no final da aventura (Leonardo e Mona Lisa... Sacaram?). No entanto, este seria um bom momento para utilizar explicações coerentes com o universo de Cassiopéia, aproveitando tudo o que foi apresentado antes; se eles explicaram até o funcionamento das naves ao espectador, isso também poderia ser elucidado...

 

4-Não tem Duelo Final entre Heróis e Vilões.

 



 

          Esse ponto talvez seja mais pessoal do que técnico, mas senti vontade de falar a respeito. Os produtores perderam a oportunidade de terminar a aventura com um duelo de caças no melhor estilo Guerra nas Estrelas, e estabelecer um conflito real entre Shadowseat e os heróis, ou ao menos entre o vilão contra Chip e Chop, os membros mais ativos na equipe dos defensores de Ateneia.

          Talvez tenha sido mais um problema decorrente da limitação técnica que praguejou Cassiopéia do início ao fim, mas nós literalmente nunca vemos os vilões e os heróis num mesmo recinto, ou mesmo usando rádios para trocarem ameaças entre si. Se existisse a possibilidade de ocorrer um duelo final entre as duas facções adversárias, este teria de ser realizado com uma batalha de naves.

 



 

E bem, e o Resto?

 

          Como dito no início do texto, Cassiopéia está disponível no Youtube, permitindo ao leitor fazer seu julgamento. A produção está longe de ser uma obra-prima, ou mesmo uma história divertida, e apenas alguns personagens são minimamente interessantes, sendo eles Leonardo e os vilões, e em menor escala Chip, o único dos quatro heróis que expressa mais emoções além da necessidade de cumprir seu dever como patrulheiro galáctico.

          Não recomendo Cassiopeia aos entusiastas de animações tridimensionais, mas imagino que os personagens coloridos possam entreter as crianças pequenas durante alguns minutos, ao menos até elas acharem um brinquedo mais interessante. Imagino um pai segurando o filho no colo e apontando para a tela, dizendo “olha o robozinho, filho, olha o robô!”. Bom, isso até o momento da transformação de Lisa numa lua, onde esse mesmo pai terá de responder ao filho se a robozinha morreu...

          O que realmente se sobressai é o pioneirismo na área (ao menos do ponto de vista histórico), a dublagem e a trilha sonora. Se o mesmo esforço tivesse alcançado a construção do enredo, dos personagens e das situações onde eles são postos à prova, talvez tivéssemos uma obra-prima do cinema nacional, e não apenas um objeto de estudo.

 

Nota geral: 05/10.

 

Texto escrito por Mateus Ernani Heinzmann Bülow.


 *Mateus é gaúcho da cidade de Santa Maria (RS), Bacharel em Direito pela FADISMA (Faculdade de Direito de Santa Maria), escritor e poeta. Em meu blog, ele contribui com análises culturais e dicas de literatura fantástica.

 *Ele é colunista do meu blog, o "Recanto da Escritora", desde 2012.


 *Mateus é autor de dois grandes livros de fantasia publicados. Seus livros mesclam ficção com elementos mitológicos da História do Brasil.


 *Texto do Mateus no Correio do Povo:


https://www.correiodopovo.com.br/cadernodesabado/o-le%C3%A3o-da-cal%C3%A1bria-uma-saga-hist%C3%B3rica-1.989016


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