Cassiopéia O Filme.
“Ateneia é
um planeta pacífico na constelação de Cassiopéia. Seus habitantes vivem em
perfeita harmonia e sua defesa é fornecida por forças-tarefas enviadas pelo
Conselho Galático Central...”.
Com essa
introdução ligeira, inicia-se um filme brasileiro animado de ficção científica que
poderia ter feito história em 1996, porém não foi longe devido a uma série de
fatores estranhos. Dirigido e roteirizado pelo animador Clovis Vieira,
Cassiopéia (não usarei o sufixo “O Filme” a partir de agora) foi um projeto
ambicioso desde o início, e tropeçou na própria expectativa, na pressão de seus
produtores, e em decisões equivocadas que prejudicaram a divulgação nos cinemas.
Quase todas as
análises disponíveis na internet passam mais tempo falando dos percalços da
produção do que da própria história, então serei breve nessa etapa: na época,
havia uma corrida entre a Pixar e a NDR Filmes, responsável por Cassiopéia. Ambos
os estúdios de animação queriam fazer o primeiro filme longa-metragem de
computação gráfica da história; os membros da NDR Filmes até acusaram os
americanos de realizarem “sabotagens”, porém nunca apresentaram provas.
Diga-se de
passagem, não podemos botar toda a culpa nos estrangeiros pelo resultado fraco
de Cassiopéia, pois a produção cometeu erros gravíssimos na distribuição. Um
dos equívocos foi lançar o filme nos cinemas no mesmo dia do início das
Olimpíadas de Atlanta (curiosamente, a mascote das olímpiadas de 1996 se
parecia com os bichinhos que aparecem em Cassiopéia). Num balanço geral, vemos
que Toy Story sai com vantagem em inúmeros aspectos, especialmente a história.
Mas e qual é a
história de Cassiopéia? Basicamente, o planeta Ateneia é atacado por uma força
misteriosa que vai consumindo lentamente a energia de seus habitantes, todos
eles robôs. Uma astrônoma chamada Lisa (erroneamente descrita como a princesa
de Ateneia em algumas análises disponíveis na internet) manda um pedido de
socorro, que é interceptado pelos robôs Chip, Chop, Feel e Thot. Agora os
heróis guardiões precisam defender Ateneia contra o pirata espacial Comandante
Shadowseat e sua frota de combate.
Como vocês
perceberam no parágrafo acima, a história é bem simples e até lembra o filme da
Turma da Mônica – A Princesa e o Robô (neste blog existe uma análise do mesmo
autor). Embora eu conhecesse Cassiopéia há mais tempo, meu primeiro contato com
a história foi via Youtube, onde o filme foi disponibilizado pelo próprio
Clóvis Vieira. Apesar de alguns méritos na produção, existem problemas sérios
na narrativa e nos personagens, e vamos vê-los de perto. Afivele o cinto, e
prepare-se para viajar pelo espaço!
Pontos positivos:
1-A Computação Gráfica é Datada, mas não chega a incomodar
(muito).
Nas palavras de
Clóvis Vieira, produzir Cassiopéia foi como “tirar leite de pedra”, devido às
limitações dos computadores da época, já arcaicos e defasados em comparação com
as máquinas disponíveis aos produtores da Pixar no mesmo período. Os cenários dos
planetas visitados pelos heróis não possuem maiores atrativos, mas os
personagens se salvam em meio ao quase “primitivismo” do CG brasileiro.
Um detalhe interessante
à primeira vista é a ausência de pernas nos personagens, o que provavelmente
foi uma escolha prática, não estética. Temos os robôs voadores (parecidos com o
Robozinho herói da Princesa e o Robô, aliás), além de autômatos com rodas, sem
contar os alienígenas a serviço de Shadowseat, parecidos com vermes ou lesmas
se arrastando no chão. Esse ponto chama a atenção, pois é raro vermos histórias
de ficção científica com os robôs no papel dos mocinhos, enquanto seres
orgânicos são os antagonistas.
Apesar dos heróis
e dos habitantes de Ateneia serem todos robôs, os designs deles possuem algumas
diferenças: Chip é baixinho e alaranjado, Chop é mais gordinho, enquanto Lisa
possui brincos nas laterais da cabeça para diferenciá-la como uma garota. Os
movimentos deles parecem mais lerdos em comparação com as produções modernas de
computação gráfica, mas cumprem seu papel ao representar as ações dos
personagens.
2-O Comandante Shadowseat e sua Trupe.
Os invasores
aparecem logo no início, e provavelmente são os melhores personagens, ou ao
menos os integrantes mais coerentes da trama. Shadowseat não é um vilão
memorável, mas ele funciona num filme infantil, na posição de ameaça a ser
combatida a todo custo. Com exceção de Shadowseat, cujo nome poderia ser
traduzido no português para “Trono Negro”, nenhum membro da tripulação possui
nome próprio, e apenas suas posições hierárquicas são indicadas, tais como
Capitão e Engenheiro.
Uma cena
interessante ocorre quando um soldado raso de seu exército revela que o Capitão
omitiu trechos do relatório sobre as cápsulas enviadas por Lisa ao espaço,
rendendo-lhe punição e demoção do cargo. Ao tentar se aproveitar da situação em
benefício próprio, o soldado é repreendido por Shadowseat, que o chama de desleal
por entregar seu superior hierárquico, e ainda o ordena a considerar-se “devidamente
recompensado” por não sofrer o mesmo destino do Capitão.
Em comparação com
outros vilões da ficção científica, Shadowseat é mais focado em seus objetivos,
pois ele não deseja dominar Ateneia ou o universo, e sim roubar a fonte de
energia do planeta e sumir o quanto antes. O sinistro comandante espacial
também dá ordens expressas aos seus pilotos para não causarem danos em
construções civis, pois isto atrairia as frotas do Conselho Galático Central.
3-Leonardo, o Cientista.
Numa das etapas
da viagem, os patrulheiros intergalácticos necessitam pousar em um planeta onde
a população ainda não desenvolveu a viagem interplanetária, e precisam usar rodas
para se parecerem com os nativos. Nesse mesmo planeta eles encontram o robô
Leonardo e uma criatura formada apenas por um par de olhos azuis, chamada
Galileu; os personagens são duas referências óbvias aos cientistas do
Renascimento italiano, Leonardo da Vinci e Galileu Galilei.
Leonardo revela
aos patrulheiros que parte da população de seu planeta já sabe da existência de
outros seres, antes de entregar a cápsula perdida a eles. Mais tarde, Leonardo
aparece em Ateneia com uma frota de espaçonaves construídas com sucata, usando
como base uma “engenharia reversa” obtida na cápsula.
Parte da diversão
desse personagem está na forma como ele fala, parecendo um locutor de futebol
ao retratar as jogadas. O cientista ainda solta tiradas como “esse outro não
consegue nem assustar bebezinho” ou “vamos brincar de fotografia, olha o
passarinho!”, deixando-o parecido com um “tiozão” ao falar.
4-O Visual das Naves.
Se o visual dos
personagens e dos cenários não é grande coisa, ao menos as naves se salvam em
suas aparências distintas. Elas vão desde a nave principal utilizada pelos
quatro heróis, que é capaz de se dividir em duas, até os caças espaciais verdes
em formato de escorpião usados pelos capangas de Shadowseat.
Um trecho que eu
achei engraçado ocorre no momento em que os heróis precisam abandonar a nave,
após a mesma ser atingida por muitos asteroides de uma só vez. O “bote
salva-vidas” deles trata-se de uma versão menor da própria nave, como se fosse
um brinquedo ou réplica. Os robôs ficam pequenos, entram na réplica, e depois
da fuga a nova espaçonave volta ao tamanho original, bem como seus tripulantes.
É tão ridículo que eu dei risada!
Perto do final da
aventura aparecem mais naves de combate criadas por Leonardo e com um visual
rústico, parecidas com engenhocas Steampunk (se quiser saber mais sobre esse
gênero, procure o texto sobre os Gêneros e Estéticas da Fantasia e Ficção
Retrofuturista, do mesmo autor). As batalhas entre as naves são “lentas”,
devido às já citadas limitações do CG utilizado, mas cumprem seu papel na
história.
5-A Trilha Sonora é muito Boa.
https://www.youtube.com/watch?v=VwtVQxT2m2g
Quase todas as
músicas são trilhas incidentais parecidas com as utilizadas em séries clássicas
de ficção científica. A exceção é essa música de Sylvinha Araújo, que toca no
meio da aventura, quando tudo parece perdido. É impossível não se lembrar das
músicas da Princesa e o Robô nessa etapa.
6-A Dublagem.
Parte do charme
de Cassiopéia está na dublagem competente, contando com nomes consagrados na
época, alguns já falecidos. Os melhores deles são Jonas Mello interpretando o
Comandante Shadowseat (é incrível como esse dublador fez quase todos os vilões
de filmes animados até a década de 1990) e Osmar Prado como Leonardo. Rosa
Maria Barolli (Lisa), Cassius Romero (Chop) e Marcelo Campos (Chip) também
fizeram um bom trabalho.
Pontos negativos:
1-História Arrastada e sem maiores Atrativos.
Apesar do
pioneirismo e inovação, é inegável que Cassiopéia falha miseravelmente no que
deveria ser o principal objetivo de um filme, seja ele animado ou não: contar
uma história interessante. Certos trechos deixam subscrito que a limitação
técnica foi responsável pela estruturação da trama, e eu imagino que deixar a
produção e roteirização nas mãos de Clóvis Vieira também prejudicou o andamento,
sobrecarregando-o em dois aspectos dependentes de habilidades distintas.
Cassiopéia tem
duração aproximada de uma hora e vinte minutos, o que não é muito longo em se
tratando de animações, mas a história se arrasta como uma lesma aleijada, tão
burocrática quanto uma repartição pública. Os quatro heróis não aparecem juntos
antes da primeira meia hora do filme, e precisam encontrar todas as cápsulas
enviadas por Lisa, antes de partirem ao resgate de Ateneia. Antes disso, Chip e
Chop ainda necessitam derrotar outro bicho esquisito, numa luta que dura mais
tempo que o necessário.
Esse ponto,
aliás, eu considero a maior fraqueza do filme: os heróis e os vilões estão
procurando por Ateneia durante quase toda a segunda metade da aventura, e isso
apenas serve para enrolar ainda mais a história. As aventuras espaciais de
Chip, Chop, Feel e Thot até que são divertidas, passando pelo planeta de
Leonardo, por cinturões de asteroides e um buraco negro (bisonhamente chamado
de “ralo dimensional” por Chop), mas poderiam ter encurtado alguns trechos.
Outro detalhe que
incomoda é ver os heróis quase sempre lidando nos computadores e conversando
entre si, o que é algo bem chato para uma criança; afinal de contas, eles são
patrulheiros intergalácticos, ou funcionários de uma empresa de tecnologia?
Quase todos os diálogos soam tediosos, protocolares e vazios, e ninguém parece
“falar” de verdade, apenas explicar coisas e mais coisas. Isso até faz sentido
em se tratando de robôs, mas também deixa a história sem graça.
2-Interação quase Nula entre os Personagens.
Esse ponto
tratará de revelações no enredo, assim como os trechos seguintes, então leia
por sua conta e risco. Aos cinquenta minutos de filme, os quatro heróis
finalmente encontram Ateneia, enquanto os vilões preparam uma invasão.
Infelizmente, o tédio dos momentos anteriores já apagou qualquer expectativa.
Nessa altura do
campeonato, o espectador já não está mais interessado em nada, porque os personagens
não demonstram entrosamento. Mesmo entre os quatro heróis é difícil enxergar
algo parecido com amizade ou companheirismo, exceto entre Chop e Chip, os
únicos membros da equipe que estão realmente arriscando a própria pele (ou os fusíveis)
contra a frota de Shadowseat.
Os leitores
provavelmente imaginam que Lisa terá uma grande importância nessa etapa da
batalha por Ateneia. Eu digo que sim e não ao mesmo tempo, por razões bizarras.
Depois dos vinte primeiros minutos, Lisa não acorda em momento algum, parecendo
uma “Bela Adormecida” durante todo o restante da aventura. Isso até Galileu
fazer uma magia doida que auxiliaria os heróis, porém selaria o destino da
astrônoma.
3-Ciência um tanto Convoluta.
Vocês se lembram
de quando eu comentei sobre os diálogos serem explicações em cima de
explicações? Pois bem, isso se deve a um detalhe bizarro do universo ficcional
de Cassiopéia: além de viajar pelo espaço sideral, as naves dos heróis e vilões
também atravessam dimensões temporais. Isso até parece interessante num
primeiro momento, mas também traz mais questionamentos: como os vilões não
sabem a dimensão onde está Ateneia, e mesmo assim conseguem sugar a energia
deles?
Praticamente tudo
é descrito pelos personagens, mesmo quando não há necessidade de maiores
explicações. Um exemplo ocorre quando os quatro heróis partem em sua jornada na
busca pelas quatro cápsulas; bastaria apenas mostrar as naves realizando os
procedimentos necessários, mas eles precisam falar coisas do tipo “iniciando o
processo de acoplamento”, “iniciando impulsão magnética”.
Entre todas as
ocorrências estranhas em Cassiopéia, nada supera o que acontece com a Doutora
Lisa: a robozinha literalmente se transforma numa lua, e assim o planeta
Ateneia consegue absorver mais luz para recuperar a energia de seus habitantes,
além de alimentar um raio para destruir a máquina absorvedora de energia dos
vilões. Como é possível um ente mecânico se transformar numa lua? Nas palavras
de Leonardo: “Segredos aqui do Galileu”. E se você não entendeu, azar o seu
(até rimou)!
Devo dizer que a
produção foi corajosa ao mostrar o sacrifício de uma personagem importante à
trama, e Leonardo até fez uma pintura em homenagem à astrônoma no final da
aventura (Leonardo e Mona Lisa... Sacaram?). No entanto, este seria um bom
momento para utilizar explicações coerentes com o universo de Cassiopéia,
aproveitando tudo o que foi apresentado antes; se eles explicaram até o funcionamento
das naves ao espectador, isso também poderia ser elucidado...
4-Não tem Duelo Final entre Heróis e Vilões.
Esse ponto talvez
seja mais pessoal do que técnico, mas senti vontade de falar a respeito. Os
produtores perderam a oportunidade de terminar a aventura com um duelo de caças
no melhor estilo Guerra nas Estrelas, e estabelecer um conflito real entre
Shadowseat e os heróis, ou ao menos entre o vilão contra Chip e Chop, os
membros mais ativos na equipe dos defensores de Ateneia.
Talvez tenha sido
mais um problema decorrente da limitação técnica que praguejou Cassiopéia do
início ao fim, mas nós literalmente nunca vemos os vilões e os heróis num mesmo
recinto, ou mesmo usando rádios para trocarem ameaças entre si. Se existisse a
possibilidade de ocorrer um duelo final entre as duas facções adversárias, este
teria de ser realizado com uma batalha de naves.
E bem, e o Resto?
Como dito no início
do texto, Cassiopéia está disponível no Youtube, permitindo ao leitor fazer seu
julgamento. A produção está longe de ser uma obra-prima, ou mesmo uma história
divertida, e apenas alguns personagens são minimamente interessantes, sendo
eles Leonardo e os vilões, e em menor escala Chip, o único dos quatro heróis
que expressa mais emoções além da necessidade de cumprir seu dever como
patrulheiro galáctico.
Não recomendo
Cassiopeia aos entusiastas de animações tridimensionais, mas imagino que os
personagens coloridos possam entreter as crianças pequenas durante alguns
minutos, ao menos até elas acharem um brinquedo mais interessante. Imagino um
pai segurando o filho no colo e apontando para a tela, dizendo “olha o
robozinho, filho, olha o robô!”. Bom, isso até o momento da transformação de
Lisa numa lua, onde esse mesmo pai terá de responder ao filho se a robozinha
morreu...
O que realmente
se sobressai é o pioneirismo na área (ao menos do ponto de vista histórico), a
dublagem e a trilha sonora. Se o mesmo esforço tivesse alcançado a construção
do enredo, dos personagens e das situações onde eles são postos à prova, talvez
tivéssemos uma obra-prima do cinema nacional, e não apenas um objeto de estudo.
Nota geral: 05/10.
Texto escrito por Mateus Ernani Heinzmann Bülow.
*Mateus é gaúcho da cidade de Santa Maria (RS), Bacharel em Direito pela FADISMA (Faculdade de Direito de Santa Maria), escritor e poeta. Em meu blog, ele contribui com análises culturais e dicas de literatura fantástica.
*Ele é colunista do meu blog, o "Recanto da Escritora", desde 2012.
*Mateus é autor de dois grandes livros de fantasia publicados. Seus livros mesclam ficção com elementos mitológicos da História do Brasil.
*Texto do Mateus no Correio do Povo:
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