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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Mulan Live Action – Análise.

Olá, pessoal! 


Hoje o texto foi escrito pelo nosso colunista Mateus Ernani Heinzmann Bülow. Ele analisou de forma crítica o novo filme "Live Action" da Disney: Mulan. Boa leitura!



 Mulan Live Action – Análise.





A onda de readaptações de filmes animados da Disney está bem longe de acabar. A empresa de animação do Mickey iniciou os remakes com uma adaptação em live-action (uso de atores reais) de Mogli – O Menino Lobo em 1994, seguido de 101 Dálmatas, realizado em 1996 e recebendo uma continuação em 2000.

No entanto, considera-se que a verdadeira “onda” dos live-actions se iniciou com Alice no País das Maravilhas, em 2010, seguido de Malévola, em 2014. Apesar dos resultados ambíguos na crítica e na bilheteria, a Disney continua produzindo versões “repaginadas, mas nem tanto” de seus clássicos. E isso nos leva à produção mais recente do estúdio, e também a primeira a ser lançada no canal de streaming Disney+: o remake live-action de Mulan.

A produção deste remake começou no início da década de 2010, mas foi suspensa por muitos anos, o que adiou seu lançamento para 2020, um ano nada favorável para estreias em cinemas, devido à pandemia do Covid-19. Como veremos na análise, a data não se trata da única polêmica envolvendo este filme com a China.

Eu começo esse texto avisando o leitor de que não pegarei leve com o que considero um dos piores filmes que a Disney lançou nos últimos anos. O filme original da Mulan de 1998 é uma das minhas produções favoritas desse grande estúdio de animação, e admito que isto me deixou mais “ácido” diante do remake.

A linha narrativa é bem parecida com a história da versão em desenho animado, sobre uma garota chinesa que precisa salvar a honra da família assumindo o lugar de seu pai no exército, enquanto os hunos invadem o Império Chinês. No entanto, quase todas as mudanças no enredo foram de mal a pior, por motivos inimagináveis.

Com isso em mente, eu convido o leitor a pôr o arreio no cavalo, e se preparar para uma viagem por terrenos íngremes, com algumas revelações no enredo em meio às palavras duras. Esporeie sua montaria, siga adiante e cuidado com os nômades escondidos entre os parágrafos!


Pontos positivos:


1-Os cenários.


   



Em matéria de ambientação, os produtores capricharam nos visuais, indo desde a vila onde Mulan vive com sua família, até os palácios imperiais. A pesquisa sobre as moradias dessa época foi levada em consideração pelos produtores do remake, com destaque para a vila em formato circular, que causa espanto à primeira vista, porém logo se revela interessante, com o vai e vem dos agricultores e comerciantes.

Além dos cenários construídos pelos homens, são dignas de nota as montanhas do norte da China, em seus tons alaranjados e picos nevados. Os trechos onde personagens cavalgam de um lado a outro possuem boa fotografia, dando uma ideia do tamanho de suas jornadas. Infelizmente, veremos o lado sombrio dos cenários montanheses, logo adiante...


2-O Vilão possui uma motivação mais plausível.




O líder dos guerreiros nômades na versão live-action é Bori Khan, diferentemente de Shan Yu, o vilão original. Ao invés de “hunos”, os antagonistas são descritos como Rouranos, um dos inúmeros povos nômades além da Grande Muralha, e adversários da Dinastia Wei do Norte. Na época dos Rouranos, a China encontrava-se fragmentada em três reinos diferentes, mas isto não é retratado na história.

Bori Khan conta com uma vantagem em comparação com Shan Yu, considerado um dos vilões mais “fracos” da Disney, porém intimidante o bastante para deixar presença no extenso rol de antagonistas. Enquanto o vilão original desejava “apenas” conquistar a China, Bori Khan quer se vingar do Imperador (interpretado pelo veterano de filmes de artes marciais Jet Li), pois este matou o pai do líder nômade em um conflito anterior.

No fim, o desejo de vingança torna o vilão mais interessante, mas não se trata de algo absolutamente necessário ao enredo. Se quisessem deixar Bori Khan com os mesmos objetivos de sua contraparte animada, isto não teria feito diferença alguma no andamento da história da versão live-action.


Pontos negativos:


1-A Protagonista.





Os problemas se mostram evidentes logo no início da aventura, quando vemos Mulan ainda criança mostrando não se tratar de uma garota qualquer, possuindo grande domínio do Chi, a força vital dos seres vivos. Se quiséssemos usar um comparativo familiar aos brasileiros, poderíamos equiparar o Chi ao Axé das mitologias afro-brasileiras, cuja tradução literal significa “Força” ou “Vitalidade”.

O simples fato da protagonista ser especial desde o nascimento já vai contra toda a lógica do filme original, onde Mulan se destacava entre seus companheiros de guerra com muito esforço e treinamento, além de uma pitada de criatividade ao resolver problemas em seu caminho. Resumindo, a força dela se encontrava no fato de não ter algo especial, e sim tornar-se especial.

Diga-se de passagem, a atriz que interpreta Mulan, chamada Liu Yifei, é tão expressiva quanto uma porta. Durante metade do tempo ela parece dopada enquanto atua, quase sempre fazendo a mesma expressão de cachorro perdido. Mesmo os sorrisos dela aparentam artificiais, e a relação da protagonista com sua família não carrega peso algum, devido à dificuldade em se importar com os personagens.

Um dos maiores pecados de remake foi mudar a cena onde Mulan foge usando a armadura da família. No original, a personagem faz um ritual antes de tomar essa decisão extrema, cortando os cabelos e deixando oferendas aos espíritos protetores da família, enquanto aqui ela aparece vestida com a armadura e some da vila, sem mais nem menos.


2-Humor falho, ou quase inexistente.




Como se não bastasse a dificuldade do espectador em se importar com o destino dos personagens, as cenas supostamente “engraçadas” não funcionam como deveriam, ou então causam risos pelo constrangimento. A melhor descrição possível para o humor no remake seria algo como “não estamos rindo com você, estamos rindo de você”.

Iniciemos com uma situação ocorrida na vila, quando Mulan vai a uma casamenteira, junto de sua irmã, uma personagem que não existia no filme original. A irmãzinha possui apenas um traço de personalidade, que é o medo de aranhas, e isso leva a uma situação cômica durante o chá. Entretanto, devido ao dom da protagonista, o pior é evitado, ao menos por alguns minutos.

(Ei, Disney, uma ideia aqui: ninguém pensou que talvez fosse interessante deixar a irmã de fora da história, e fazer a Mulan ter medo de aranhas? Não parece muito importante, mas demonstrar que o protagonista sente medo de algo é uma forma eficaz de facilitar a empatia dos espectadores por ele).

Os próximos momentos (supostamente) engraçados ocorrem no quartel, onde Mulan se “disfarça” de homem e sente-se constrangida em meio às piadas grosseiras. No filme original existiam três soldados com personalidades bem definidas, chamados Yao (o baixinho nervoso), Ling (o magrão) e Chien-Po (o gorducho); nenhum dos companheiros de Mulan se destaca em meio à massa amorfa de soldados no remake, com exceção de um deles, que desconfia da identidade da moça.

A única cena onde o humor funciona por um breve minuto ocorre quando Mulan tenta tomar banho em um lago sem ser vista, apenas para ser quase descoberta pelo soldado desconfiado de seu segredo. Entretanto, a comparação com a cena original é inevitável, pois no filme animado a situação é muito mais engraçada:





https://www.youtube.com/watch?v=gdUZE9wu9V4


3-Tentou ser um “Filme de Guerra”.





Provavelmente alguém no fundo da plateia está pensando: “ora, mas o filme original já falava em guerra!”. E eu concordo com essa afirmação. Até porque a declaração sobre o remake ser um “filme de guerra” foi uma desculpa dos produtores para explicar a ausência de números musicais na história, afinal de contas “ninguém canta durante uma guerra”.

Todo indivíduo que serviu no quartel (ou ao menos ouviu histórias de quem serviu) sabe a importância das músicas em marchas e corridas para manter o ritmo do treinamento constante. No passado também era comum ver soldados cantando e rezando em meio às piores batalhas, como forma de se encorajar diante do inimigo, e mesmo nos momentos de calmaria entre o combate, para baixar a tensão.

Desde o surgimento do cinema na China, inúmeras versões da Balada de Mulan foram realizadas no longínquo país asiático, quase todas elas focadas no aspecto guerreiro da personagem lendária. O objetivo original do remake era estourar nas bilheterias chinesas, porém o filme sofreu críticas severas da mídia local, sob o argumento de que os espectadores chineses assistiram “mais do mesmo” nos cinemas. Como veremos logo em seguida, este não foi o único motivo pelo qual os asiáticos não gostaram da produção.


4-Não há quase nada do que fazia o Original ser tão bom.





A primeira ausência sentida ao assistir o remake cabe às músicas do filme original, especialmente “Homem Ser” (“I’ll Make a Man out of You”, em inglês). Não demora até vermos mais ausências pela frente, nesse caso de personagens que se não eram indispensáveis à história, ao menos davam vida a ela, como é o caso da avozinha da Mulan, ou os espíritos dos ancestrais da família.

Outra mudança que não desceu bem foi a ausência de Mushu, o pequeno dragão que serve de protetor à garota. Em comparação com outros personagens secundários da Disney, como o Timão e Pumba do Rei Leão, ou os serventes-objetos da Bela e a Fera, Mushu não é muito querido pelos fãs. Mas convenhamos: botar uma fênix no lugar do dragão foi uma ideia horrível. E os produtores usaram outra desculpa esfarrapada para se defender, afirmando que a fênix representa a “energia feminina” da protagonista.


  



O pássaro colorido parece ter saído de um desfile carnavalesco, além de não falar nada e aparecer em poucas cenas, com destaque para um trecho da luta final, onde as asas dela surgem atrás da Mulan, antes da guerreira enfrentar Bori Khan. Eu quase achei que o filme se transformou num clipe do Evanescence nesse trecho.

Além de Mushu, outra ausência no enredo foi o general Li Shang, que servia de par romântico à protagonista. Aqui ele foi dividido em dois personagens, nesse caso o soldado que desconfia da identidade de Mulan, e o general do exército chinês. Com essa divisão temos mais dois personagens unidimensionais numa história que já está cheia deles.

O general, aliás, parece sofrer de transtorno bipolar: em um momento ele se enfurece ao saber que Mulan mentiu para se juntar ao exército imperial. Logo em seguida, o líder chinês entrega a liderança das tropas de cavalaria à garota, sob o argumento de que ela sabe de uma tramoia para capturar o Imperador.

De novo isso nos leva à comparação com o filme original, onde Li Shang apenas deposita confiança na jovem após a captura do monarca ser levada a cabo, enquanto aqui basta a palavra de Mulan e alguns companheiros para convencer o general. Com lideranças desse naipe, é espantoso o Império Chinês não ter caído antes...


5-A Bruxa do Mal.




Vamos falar agora do que considero a pior adição a esse desastre, em um remake cheio de péssimas ideias. Os produtores acharam que Bori Khan não bastava como vilão, e meteram na história uma feiticeira capaz de se transformar num falcão; eu a chamarei de Rita Repulsa nessa análise, em “homenagem” à vilã clássica dos Power Rangers, pois ambas são igualmente ridículas.

Provavelmente alguém na plateia está se perguntando se a bruxa existia no poema da Balada de Mulan, e eu já adianto que não. Nenhuma das versões cinematográficas chinesas possui alguma personagem similar à Rita Repulsa do remake, ao menos até onde chega meu conhecimento. Aparentemente eles desejavam mostrar uma personagem feminina “forte”, e a Mulan não conseguia cumprir esse “requisito”, mesmo contando com o poder do Chi.

Pouco é dito sobre o passado da bruxa na história, exceto seu desejo em ser aceita em uma sociedade que não se importe de sua condição. Assim como a Mulan, Rita Repulsa detém grande Chi, sendo temida e odiada. E o que a feiticeira faz para reverter sua lamentável situação? Decide ajudar os Rouranos a invadir a China. Sem dúvida isso irá ensinar esses intolerantes, não é mesmo?

Quase todos os momentos da Rita Repulsa são de uma pasmaceira do tamanho da Grande Muralha, pois o roteiro tenta incutir simpatia à personagem. Não importa se a bruxa matou inúmeros soldados usando garras de falcão, ou se disfarçou para enganar o Imperador: você, espectador, precisa sentir pena dela!

Uma personagem tão dispensável apenas poderia receber um final patético: após Mulan ser expulsa do exército, Rita Repulsa fica de mal com Bori Khan (o que não faz sentido, afinal ele foi o único personagem a demonstrar respeito à feiticeira), e revela à protagonista que os Rouranos vão invadir a capital do Império Chinês. Admirada ao ver Mulan enfrentando os bárbaros enquanto se mantém fiel à sua essência (seja lá o que isso significa), Rita Repulsa se sacrifica levando uma flechada no lugar da garota.


6-Inúmeras polêmicas desnecessárias.




Esse ponto negativo não diz respeito ao andamento do enredo ou dos personagens, porém tornou-se um verdadeiro elefante na sala, e não pode ser ignorado. Os produtores e até os atores conseguiram a proeza de atrair péssima publicidade antes do lançamento do remake, além de se meterem em verdadeiras crises diplomáticas.

A primeira lambança foi uma “cortesia” da própria atriz principal, Liu Yifei, que soltou um tweet defendendo a atuação da polícia de Hong Kong durante os protestos de 2019. A mensagem de Liu Yifei pode ser traduzida dessa forma ao português: “Eu apoio a polícia de Hong Kong. Você pode me bater agora. Que vergonha para Hong Kong!”.

Os cidadãos de Hong Kong reagiram lançando uma campanha de boicote ao remake, diminuindo as chances de retorno em um mercado rentável. Muitos ativistas virtuais ironizaram a dupla nacionalidade de Liu Yifei, naturalizada americana havia poucos anos, pois enquanto a atriz pode usufruir da democracia dos EUA, o povo de Hong Kong sofre sob as crescentes restrições à liberdade impostas pelo governo comunista chinês.





A encrenca seguinte deve-se a uma frase nos créditos finais, onde a Disney agradece às autoridades governamentais de Xinjiang, uma província autônoma chinesa. A região faz parte da China desde o Século XVIII, e teve curtos períodos de autonomia no passado, mas nunca deixou de ser um barril de pólvora encravado no imenso país. As autoridades chinesas buscam reprimir os movimentos separatistas em Xinjiang, até hoje.

Os cenários montanheses descritos no início da lista são parte de Xinjiang, e nessa região existem denúncias de genocídio sistemático cometido pelo governo chinês contra o povo Uigur, ao lado de campos de “reeducação” estabelecidos sob a justificativa de combater o terrorismo. Mais boicotes foram organizados contra o remake, em resposta à aparente conivência da Disney diante de um crime contra a humanidade.





A última polêmica envolvendo o remake é leve em comparação com as anteriores, porém não escapa ao olhar: o ator que interpreta o pai da Mulan é quase igual ao atual presidente da República Popular da China, Xi Jinping. Talvez seja apenas uma coincidência, ou então a Disney quis dar um afago no líder chinês, sabendo que os negócios no país asiático dependem muito do aval do Manda-Chuva de ocasião.




Ironicamente, essa não foi a primeira controvérsia envolvendo Xi Jinping e a Disney: em 2017, o personagem Ursinho Pooh foi banido da China, pois os críticos do governo comparavam o simpático bichinho amarelo guloso com Xi Jinping, como forma de burlar a censura. Até hoje o personagem continua proibido no país asiático, o que não impediu os internautas de realizarem montagens hilárias.


7-Quis agradar todo mundo, e não agradou ninguém.





Para finalizar os pontos negativos, vamos dar uma palavrinha final aos espectadores, o equivalente dos clientes nas produções cinematográficas: as reações negativas superaram em larga vantagem os elogios ao remake. Nem mesmo uma forcinha da “crítica especializada” serviu para evitar o desastre.

Percebe-se que o objetivo do remake de Mulan passava por dois grupos distintos e antagônicos: o imenso mercado chinês e o expressivo público desejoso de personagens femininas fortes. A Disney descobriu a impossibilidade de satisfazer ambos, pois a cultura tradicional chinesa é muito machista e pouco receptiva aos anseios de jovens que desejam individualidade, como ocorre com a protagonista.

A produção caminhou na corda-bamba o tempo todo, com dois “dragões” rosnando no cangote. Dessa forma, Mulan necessitava ser contestador nos costumes, porém nem tanto, sob o risco de espantar o mercado chinês e ao mesmo tempo desagradar o público feminista e progressista, pouco afeito ao militarismo na ficção. Pode se afirmar que o fogo cruzado entre os dois grupos prejudicou o produto final.

Continuando a desgraça, a produção cometeu alguns erros na retratação da cultura tradicional chinesa, imperceptíveis aos ocidentais, porém significativos aos orientais. O mais gritante exemplo é a retratação da fênix, que possui um valor muito diferente da ideia de “renascimento” adotada nesse lado do globo. Na China, o pássaro mítico se chama Fenghuang, e seu objetivo é trazer paz e prosperidade.

Em sua ânsia de arrecadar mais dinheiro do mercado chinês, a Disney teve de fazer muitas escolhas que desagradaram os ocidentais, com destaque aos mais progressistas. Por alguma razão Li Shang virou ícone entre gays e bissexuais, e roteiros descartados indicavam que ele seria “levemente homossexual” na versão live-action, assim como o Le Fou no remake da Bela e a Fera. Devido à homofobia arraigada entre os chineses, algumas decisões tiveram de ser abortadas, e isso explica a ausência do general no enredo.

No fim, o remake de Mulan tornou-se um “híbrido” indigesto, e um exemplo terrível do alto custo a se pagar em nome da relação de boa-vizinhança com um país intolerante e preconceituoso. Infelizmente, podemos esperar por mais produções em live-action abaixo do nível dos produtos originais, pois a Disney deu sinais da possibilidade de um Mulan II, ao lado de outros remakes.


Texto escrito por Mateus Ernani Heinzmann Bülow. 

Mateus Bülow é gaúcho da cidade de Santa Maria/RS, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), escritor e poeta. 

Ele é autor de dois livros de fantasia publicados:

             

*Taquarê: Entre a Selva e o Mar. 

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*Taquarê: Entre um Império e um Reino.

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