O
significado místico de A Branca de Neve
“A
Beleza não está na cara; a beleza é uma luz no coração.” Khalil Gibran
A
Branca de Neve é um conto sobre a beleza, mas não sobre a beleza física... Este
é um conto sobre a beleza do espírito e a vitória da luz sobre as trevas dentro
de nós. Em uma análise mais superficial, muitos diriam que aquela célebre frase
“Espelho, espelho, meu, quem é mais bela do que eu?” indagada pela madrasta de
Branca de Neve representaria a vaidade feminina ou a rivalidade entre as
mulheres no quesito beleza. Entretanto, farei uma análise mais profunda e
mística envolvendo este conto.
Não
dispenso que a indagação da madrasta pode ser realmente uma manifestação da
rivalidade feminina e o medo de perder a posição de mais bela para uma mulher
mais jovem e mais atraente. Não obstante, não acredito que as mulheres sejam
necessariamente rivais (este é um mito que se prolongou por falta de
autoconfiança e amor), já que é plenamente possível amar fraternalmente e
admirar outra mulher sem competir com ela.
A madrasta de Branca de Neve, no entanto, quer
monopolizar a beleza do reino por ser a rainha. E, nesse intento, ela
descobrirá que é impossível monopolizar uma virtude (sim, a beleza pode ser uma
virtude do ponto de vista filosófico ou espiritual muito além de seu aspecto
físico). Não há como ser a detentora exclusiva de um bem, pois outros seres
podem manifestar a mesma virtude ou a ter o mesmo bem. O “DNA” da inveja e até
mesmo do “inimigo” espiritual, consoante ideias da Cabala, por exemplo, está em
não querer que os outros usufruam do mesmo bem.
A
vontade de ser o único detentor de um bem ou de uma virtude está no cerne do
egoísmo, razão pela qual as religiões invariavelmente pregam a importância da
caridade, do desprendimento, do desapego, da generosidade e da doação. Se o
“DNA” do mal é o egoísmo, as raízes do bem estariam fincadas no auxílio ao próximo
e na alegria virtuosa de ver outras pessoas felizes e usufruindo os mesmos bens
ou sendo inspiradas a expressarem as mesmas virtudes que você.
A
rainha queria monopolizar tudo: dinheiro, poder, inteligência, influência e
beleza. Esse ímpeto de monopolização pode parecer que provém de alguém muito
forte e poderoso, mas revela, em verdade, alguém inseguro que tem medo de
perder a sua posição se houver outros que manifestem as suas mesmas virtudes.
Essa
é a lógica de alguns livros de autoajuda que citam o empresário que tem medo de
contratar pessoas tão boas quanto ele (ou melhores que ele) e acaba vendo a
ruína da empresa por não pensar no coletivo. Como estamos vivenciando um
período de Copa do Mundo, podemos pensar também no futebol: o time que enaltece
um jogador em detrimento da equipe corre o risco de perder, pois o jogador
enaltecido vai querer fazer os gols por si mesmo e não passar a bola para outro
colega fazer o gol (alguma semelhança com o nosso futebol?).
Quando
queremos a luz voltada apenas para nós, ao invés de brilharmos, vemos as luzes
se apagarem. Este é um conceito básico da espiritualidade: a única maneira de
se iluminar é iluminando os outros também. Uma estrela no céu não vai brilhar
menos por causa da presença de outra estrela. Aliás, quanto mais estrelas
estiverem iluminando o céu noturno, melhor! Uma vela não se apaga quando
ilumina outras velas... O nosso medo de termos a nossa luz diminuída com a luz
do outro não passa de uma ilusão. E é essa ilusão que está na base da inveja e
da competitividade do mundo moderno.
Se
convivermos com uma pessoa iluminada, não seremos apagados. Muito pelo
contrário, essa pessoa vai nos inspirar a acender a luz dentro de nós também e
passaremos a ser até mais iluminados junto dela.
No
que tange à beleza e à autoconfiança femininas, quando passa uma mulher bela e
autoconfiante, ela geralmente provoca um desconforto e um incômodo em outras
mulheres. As mulheres que colocam a sua luz para fora incomodam (é típico da
luz mexer com o outro, incomodar e até “queimar”). Costumamos apontar quem é
autoconfiante como orgulhoso e até “metido”, mas existe uma grande diferença
entre o orgulho positivo e o negativo.
O
orgulho positivo é aquele que tem a consciência da própria luz e não se
esconde, esbanjando autoconfiança, mas sem se sentir afetado ou superior por
causa disso. O orgulho negativo, por sua vez, que se sente afetado e esnobe.
Entretanto,
na maior parte das vezes, não é a pessoa autoconfiante que se sente superior,
mas a pessoa insegura que, diante de uma pessoa autoconfiante, sente-se
inferior. A pessoa autoconfiante evidencia aquilo que nós deveríamos estar
fazendo também: mostrando a nossa luz. E é por isso que ela incomoda tanto. A
pessoa iluminada provoca no outro a saída da zona de conforto, motivo pela qual
ela é tão criticada (mas só as árvores que dão frutos são apedrejadas, não é
mesmo?).
No
mundo moderno, muitas pessoas são inseguras, não acreditam nelas mesmas, não
usam o seu potencial criativo, se colocam para baixo, menosprezam a si mesmas,
não se sentem dignas de serem amadas, não acreditam em sua vocação, não
acreditam que podem se considerar talentosas, não escutam a sabedoria interior,
desconhecem as riquezas de sua alma, não valorizam a sua inteligência e não se
veem como belas. É por isso que o mundo anda tão depressivo e repleto de
doenças mentais, não é mesmo?
Nesse
contexto, quando surge uma pessoa segura, que crê nela mesma, que usa o seu
potencia criativo, que se coloca para cima, que valoriza a si mesma, que se
sente digna de ser amada, que crê na sua vocação, que acredita no seu talento,
que escuta a sabedoria interior, que conhece as riquezas de sua alma, que
valoriza a sua inteligência e que se vê como bela, o que acontece? É ela quem
será apedrejada e considera “metida” ou louca, porque o mundo está tão
invertido que ser inseguro passou a ser “normal” e ser autoconfiante parece até
estranho.
A
pessoa autoconfiante provoca os ambientes a todo instante para que as pessoas
saiam da zona de conforto, pois ela lembra que deveríamos ter mais tempo para
cuidar de nós mesmos, nos arrumarmos melhor (especialmente no caso da mulher
bela), nos sentirmos melhor e expressarmos toda a nossa inteligência,
agilidade, sabedoria, beleza, charme, sorrisos e luz. Você sabe valorizar a si
mesmo? Sabe usar todo o seu potencial criativo? Vale lembrar que, segundo o
psiquiatra Augusto Cury, poucas pessoas conseguem usar o seu potencial criativo
de maneira plena.
A
maioria de nós anda com as costas curvadas (na adolescência, quase todo mundo
passa por um período de má postura), escondendo a si mesmo e com vergonha de si
mesmo. Quando aparece alguém com a cabeça erguida, mostrando a si mesmo e com
orgulho de si mesmo, essa pessoa inevitavelmente vai incomodar.
E o
que tudo isso tem a ver com o conto de a Branca de Neve? Ora, vejam só: o que
provocou a perseguição de Branca de Neve? Sua beleza e luz. A madrasta não
suportou ver uma pessoa mais bela e mais iluminada que ela. Mais uma vez,
confirmo o que disse: as pessoas iluminadas incomodam.
Ela (a madrasta) teve medo da luz da Branca de
Neve ofuscar a dela. E, como eu já mencionei anteriormente, esse medo ilusório
é a base do egoísmo, da inveja e de toda forma de ruína dos seres humanos. Ao
invés de ela se sentir orgulhosa por sua enteada ter se tornado uma bela
mulher, ela passa a desejar a perseguição e a morte de Branca de Neve.
Não
obstante, como mencionei no início, este conto não paira apenas na rivalidade
feminina ou na beleza física. Há um significado esotérico e místico muito mais
profundo: o que torna Branca de Neve mais bela do que sua madrasta não é a sua
beleza física ou o frescor de sua juventude, mas o seu coração bondoso. A
rainha má não suporta perceber que a beleza interior de Branca de Neve faz com
que a princesa seja a mais bela em todos os sentidos (a virtude interior realça
a beleza externa também).
A
rainha, assim como todas as pessoas superficiais, não suporta ver que a
profundidade de quem cultiva a beleza interior acaba se destacando muito mais e
tendo mais valor do que o seu poder mundano, suas riquezas materiais e beleza
física. A rainha se considerava a pessoa mais bela, rica e poderosa até então,
mas Branca de Neve mostra para ela que a beleza interior, a riqueza dos valores
espirituais e o poder da luz são muito mais valorosos do que tudo que ela
tinha. A rainha viu que a beleza física por si só não fazia com que ela fosse a
mais bela e que o seu poder mundano era fraco e efêmero diante da riqueza
interior de Branca de Neve.
*As pombas brancas simbolizam a pureza, a graciosidade e a suavidade (virtudes da princesa). A princesa também canta versos que têm tudo a ver com a Lei da Atração (hehehe): "Quem quiser realizar aquilo que sonhou, basta o eco repetir o que você falou."
Branca
de Neve, mesmo parecendo ingênua, domina um mundo que a rainha não conseguia
penetrar: o mundo da sutileza espiritual. A graciosidade e a bondade de Branca
de Neve tornam a princesa mais bela e poderosa do que a rainha má cheia de
pompa. Esta conclusão deixou a rainha cheia de ódio e, então, ela manda o
caçador arrancar aquilo que há de mais belo e precioso em Branca de Neve (e
aquilo que realmente faz com que a princesa seja mais bela do que ela): o seu
coração.
Vejam
bem: se a rainha quisesse apenas ser a mais bela fisicamente, talvez ela
mandasse deformar Branca de Neve de algum modo, machucar o corpo e o rosto ou
até mesmo queimar a pele da princesa. Todavia, ela manda o caçador arrancar o
seu coração (em outras versões do Conto, a rainha manda arrancar outros órgãos,
mas vamos seguir com o simbolismo do coração). Nesse sentido, não é somente a
beleza física da Branca de Neve que incomoda a rainha, mas a sua luz interior,
pois, como afirma Khalil Gibran: “A beleza não está na cara; a beleza é uma luz
no coração.” Notaram como este conto é mais profundo do que parece?
Como
ela não tinha a capacidade de se inspirar em Branca de Neve e cultivar os
mesmos valores interiores que a princesa, ela toma uma decisão trágica e
ignorante: mandar arrancar o coração da princesa. Ela queria “usurpar” o
coração da Branca de Neve, mas não é assim que as coisas funcionam no terreno
sutil das emoções. Mesmo se ela arrancasse o coração da princesa, o coração da
rainha não passaria a ter as mesmas virtudes que o coração arrancado, já que a
beleza do coração deve nascer de dentro para fora e nunca ao contrário.
A
rainha também tem outra estratégia para arrancar a beleza interior de Branca de
Neve: fazer com que a princesa se depare com as suas trevas interiores (as
partes mais feias dentro da alma), formadas por alguns elementos, tais como:
inconsciência, instintos (o nosso “bicho” interior como dizia o saudoso
espiritualista Gasparetto) e malícia.
Este
último elemento, no entanto, foi o mais difícil de ser provocado em Branca de
Neve, já que ela ostentava certa inocência e doçura. A malícia ─ como estará em
futuras linhas deste texto ─ somente será provocada com a mordida na maçã
envenenada (a maçã sempre foi o símbolo da perda da inocência desde Adão e
Eva).
O
confronto entre a parte bela e feia de nossa alma também está destacado de modo
místico em quase todos os outros contos de fadas, especialmente em a Bela e a
Fera como já mencionei aqui no blogue.
A
primeira vez que Branca de Neve tem contato com o seu lado “animalesco” e
obscuro ocorreu quando o caçador colocou o punhal diante dela. O que um caçador
busca geralmente? Animais. E o fato de estar sendo “caçada” colocou Branca de
Neve em contato com o reino animal e com o seu lado animal também. O nosso lado
“animal” ou o nosso lado “fera” não é necessariamente ruim e, caso seja
canalizado para um bom propósito, as energias de nossos instintos serão úteis e
boas. Ocorre que os instintos presos e adormecidos dentro de nós geram
conflitos internos, pensamentos ruins, emoções mal resolvidas e males
psicológicos.
O
caçador, no entanto, não conseguiu matar Branca de Neve, pois reconhecia a
identidade humana e espiritual dela muito além de seu lado animal. Ele não
conseguiu tratá-la como animal e executar o seu “serviço”.
Além
disso, a malícia do caçador não corrompeu a inocência de Branca de Neve naquele
momento. Muito pelo contrário ─ a inocência de Branca de Neve que “derreteu” a
malícia do caçador, sendo mais uma prova do incrível poder do bem apesar de sua
aparência frágil e inocente.
O
contato de Branca de Neve com o mundo animal é retratado de forma lúdica e
encantadora no conto de fadas infantil, especialmente na versão mostrada pela
Animação da Disney: Branca de Neve é capaz de se comunicar com os animais, ter
empatia por eles e até cantar junto com eles (uma graça, hehehe).
O caçador, ao ver a inocência da garota que
era tão bondosa a ponto de ajudar um filhote de passarinho (talvez, por ser caçador,
ele já tivesse perdido essa empatia e sensibilidade diante do reino animal),
fica encantado por ela e pede para que ela fuja para a floresta. Como a rainha
almejava o coração da princesa, ele mata um bicho e arranca o coração dele,
enganando a rainha ao dizer que aquele coração era o de Branca de Neve. Vale
salientar o primeiro contato de Branca de Neve com o seu lado sombra naquele
momento: enquanto ela fala com o passarinho, a sombra dela é refletida em uma
pedra.
Quando
Branca de Neve foge assustada para a floresta, ela começa a chorar e o seu medo
dimensiona os perigos do local. Floresta é outro ambiente bastante retratado
nos contos de fadas (hehehe) por representar simbolicamente a nossa alma.
A
floresta é um arquétipo do lado mais selvagem e desconhecido da nossa alma. No
filme da Disney, muitas crianças têm medo das primeiras cenas de Branca de Neve
na floresta: a floresta parece densa e escura, os cipós são assustadores, ela
ouve os pios de uma coruja (lembrando que a coruja, embora seja vista como mau
agouro para uns, é símbolo de sabedoria), se depara com morcegos (morcegos
sempre simbolizaram o aspecto obscuro por excelência) e tem a barra do vestido
agarrada por raízes e galhos de árvores com formatos de mãos.
Além
disso, ainda no primeiro contato com a floresta, as árvores parecem fazer
caretas assustadoras, ela cai em um buraco (simbolismo puro de cair para dentro
de si e encontrar as profundezas da alma que não queremos ver... lembrando que
em Alice no País das Maravilhas há um simbolismo semelhante), ela cai em um
lago (a água é símbolo do inconsciente), vê troncos de árvores com aspectos de
jacarés/crocodilos (símbolos de nossos vícios querendo nos perseguir...) e vê
olhos grandes e assustadores ao redor dela como se fossem monstros querendo sufocá-la
por todos os lados (é, minha gente, existem muitos bichos papões no nosso
inconsciente...).
Nesse
sentido, o caçador e a floresta obscura denunciam uma dura verdade espiritual:
a de que as pessoas mais bondosas e inocentes são justamente as mais “caçadas”
pelo “inimigo” espiritual externo e pelas sombras internas. Por esta razão,
Jesus Cristo pregava: “Orai e Vigiai”.
Afinal,
por que o mal iria “caçar” as pessoas más? Isto não é necessário, pois as
pessoas más já pertencem ao mal. As pessoas boas sempre serão as mais provadas
inevitavelmente. E quase todos os contos de fadas relatam as provas espirituais
da jornada do herói e da heroína até o triunfo final do bem contra o mal.
Muitos
perguntam sobre a necessidade do mal, e eu não entrarei nesse mérito (a
pergunta sobre o mal existir em um mundo criado por um Deus bom paira na cabeça
das crianças e dos filósofos de todas as partes do mundo), mas vale lembrar o
seguinte: somente através do contato com o mal na forma de nossas sombras
internas que o ser humano adquire a sabedoria.
E
Branca de Neve precisa conhecer o lado obscuro da vida para vencer a
ingenuidade, adquirir a sabedoria e fortalecer o espírito. Além disso, é
plenamente possível vencer a ingenuidade e conservar a doçura, assim como é
possível conhecer o mal e não se contaminar por ele.
Após
passar pela floresta obscura, Branca de Neve chora em um lugar mais tranquilo e
iluminado do bosque e, ao limpar as suas lágrimas, ela percebe o seguinte: os
olhos assustadores que pareciam ser de monstros eram olhos de pequenos,
inofensivos (e fofos!) bichos. Veados, tartarugas, passarinhos, coelhos e esquilos
aparecem na cena sob a luz do dia. Isto é um recado claro sobre os nossos
“bichos” interiores: as sombras fazem com que os nossos instintos e lado animal
pareçam monstruosos, mas eles são inofensivos sob a luz. Enquanto o escuro da
floresta distorcia a visão de Branca de Neve (assim como os nossos medos
dimensionam os fatos) quanto à natureza dos bichos, a luz do dia torna tudo
mais claro, pacífico e verdadeiro.
Salienta-se
que, quando ela olha para os animais sob a luz, eles passam a se esconder dela
atrás das folhas, demonstrando medo diante dela. Isto é um recado típico do
arquétipo “A Força” do tarô: somos nós que dominamos os nossos instintos e não
o contrário.
Talvez
os nossos “monstros” internos tenham mais respeito por nós do que pensamos. Os
nossos instintos podem ser transformados em forças internas por meio da luz da
consciência. Assim como a moça do arcano maior onze do tarô é capaz de domar um
leão, a parte mais bela e iluminada do nosso espírito é plenamente capaz de
domar nossas feras internas.
A
expressão popular “deve-se matar um leão por dia” tem a ver com o assunto
(ditados populares estão longe de serem rasos ou desprovidos de significados,
já que eles representam de forma simples a sabedoria do inconsciente coletivo
diante dos símbolos), mas eu prefiro dizer: “deve-se controlar um leão por
dia”. Não precisamos matar os nossos instintos (nós precisamos das partes
ferozes da alma também), mas domá-los, dominá-los e contorná-los.
Diante
dos bichos, Branca de Neve diz que estava assustada e pede para que eles não se
escondam dela. A partir desse momento, ela começa a cantar para espantar o medo
(quem canta os seus males espanta, como afirma aquele célebre ditado popular).
Mesmo sendo colocada na floresta obscura, o seu lado inocente, doce e alegre
não se abala e renasce como a fênix.
Uma das cenas mais icônicas da história da Animação é a cena em que os passarinhos puxam a capa da princesa.
Ao
invés de ter a barra do vestido arranhada pelas árvores da floresta obscura,
ela tem a capa puxada graciosamente por passarinhos que a conduzem até o lugar
mais apropriado para uma humana perdida no bosque ─ uma pequena casa com
moradores humanos.
Assim
como as florestas, casas e castelos são as representações simbólicas da alma no
mundo onírico. Enquanto a floresta representa a parte selvagem e inconsciente
da alma, a casa representa a parte entre o subconsciente e o consciente. Nesta
casa apresentada à Branca de Neve, moram 7 anões.
Os
anões são homens pequenos que representam os potenciais latentes (que ainda são
pequenos dentro de nós) da alma (casa). O número 7 é um número místico sem
sombra de dúvida: temos 7 dias da semana, 7 cores no arco-íris, 7 notas
musicais e 7 astros principais, irmãos da terra antes do descobrimento dos
últimos planetas do sistema solar (sol, lua, mercúrio, vênus, marte, júpiter e
saturno).
Na
Bíblia, o número 7 representa totalidade e plenitude. No apocalipse, há 7
taças, 7 selos, 7 igrejas e 7 trombetas. No evangelho de Mateus, Jesus diz que
precisamos perdoar 70 vezes 7. Para a religião católica, há 7 pecados capitais
(orgulho, ira, gula, cobiça, inveja, luxúria e avareza). Vale salientar que o Sabbat, o sétimo dia, é o dia sagrado do
coroamento da criação e da contemplação de Deus diante da perfeição de suas
obras.
Consoante
o grego Hipócrates, o número 7 possui virtudes, guarda todas as coisas, confere
vida, gera movimento e influencia até mesmo o mundo celestial. Para a
espiritualidade, o número 7 rege as ordens planetárias, as moradas celestes, a
ordem moral, a ordem espiritual e as energias astrais. Além do mais, a rosa de
sete pétalas está vinculada às sete hierarquias angelicais.
Ressalta-se
que o número 7 é muito importante no misticismo (e eu não vou entrar no mérito
de tudo o que ele representa, pois é praticamente infinito esse simbolismo), e
é importante lembrar que, consoante a numerologia, o 7 representa a perfeição, a consciência, a intuição, a
sabedoria, a espiritualidade, a conclusão cíclica e a renovação.
A
entrada na casa dos 7 anões representará para Branca de Neve conclusão de um
ciclo e a sua renovação. Certamente, ela não será mais a mesma princesa
inexperiente que vivia com a madrasta após passar por esta casa. Nessa casa,
cada Anão tem um nome que elucida sua característica: Mestre, Dengoso, Atchim, Feliz, Dunga, Soneca e Zangado.
Cada
anão representa uma face dela mesma: Mestre é a sabedoria, Dengoso é a
inocência romântica, Atchim é o seu lado distraído e gentil, Feliz é o lado
alegre da alma, Dunga é o ingênuo aprendiz, Soneca mostra o pecado capital da
preguiça e Zangado elucida de forma divertida o pecado capital da ira. A
convivência com os anões fará com que ela saiba reintegrar as forças opostas
dentro da alma (sabedoria/ignorância, luz/trevas, calma/ira, inocência/malícia
e etc).
Não é
fácil integrar cada parte da alma. A loucura nasce, muitas vezes, da desarmonia
entre características diferentes dentro da mesma pessoa (no mapa astrológico
natal, esses conflitos internos são vistos através dos aspectos tensos entre os
planetas).
Quando
os anões se deparam com a casa ocupada pela princesa, eles se assustam por não
estarem acostumados a dividir aquele pequeno espaço com outra pessoa. Branca de
Neve logo limpa e organiza a casa, indicando qual deve ser a primeira coisa que
devemos fazer ao entrar em contato com a nossa alma: colocar ordem na “casa”. É
comum que, ao adentrarmos no território da nossa psique, as coisas estejam bagunçadas, desarrumadas e cheias de
teias de aranhas ─ são os nossos velhos medos, antigos traumas, complexos de
culpa, angústia e insegurança.
Sendo
assim, é nosso papel arrumar a “casa” interna, consertando sentimentos,
limpando medos, lavando traumas e organizando o território das emoções. Talvez
até os nossos próprios instintos e intuições nos ajudem nesse processo todo (e
os animais, símbolos do que há de mais instintivo, ajudam Branca de Neve na
Animação a limpar a casa de forma lúdica).
Ao
entrarmos em contato com a alma, é necessária a purificação de nossas
potências. Cada Anão é como se fosse uma “potência” e eles são purificados
quando Branca de Neve ordena que eles tomem banho e lavem as mãos. A “casa” da
alma fica mais limpa e tudo começa a ficar mais harmônico desde então. Branca
de Neve também passar a cozinhar para os anões, enunciando que é preciso nutrir
as nossas potências se quisermos evoluir.
Quanto
aos anões, é preciso salientar que a profissão deles é bem mística: garimpeiros
trabalham com a exploração, mineração ou extração de substâncias minerais como
pedras preciosas, ouro, diamantes e diversos outros minérios. No misticismo,
sempre foi feita uma analogia entre alquimistas e garimpeiros, pois os
alquimistas sábios almejam encontrar a pedra filosofal, considerando que esta é
capaz de transmutar qualquer metal inferior em ouro.
A
busca pelo “ouro” não deve ser interpretada de maneira literal como se fosse o
desejo por riqueza material, mas de modo metafórico: o “ouro” dos alquimistas
seria a parte mais bela e pura do espírito que se esconde dentro de nós. A
tarefa do alquimista seria despertar este ouro, “garimpar” a alma, transmutar
sentimentos inferiores (medo, angústia, inveja e outros) em sentimentos
elevados (coragem, paz, autoconfiança e etc) como se estivesse transformando
metal em ouro (assim é a transmutação da alma e a iluminação do ser).
Muitas
vezes, o nosso “ouro” interior está “adormecido” e acabamos agindo de modo
inconsciente ou pela ignorância. Talvez ele esteja escondido sob a lama de
nossos pensamentos ruins e sentimentos inferiores, e nossa tarefa seja trazê-lo
à tona, assim como a flor de lótus é capaz de florescer pura e bela sem se
contaminar com o lodo de onde vem.
Muito
embora Branca de Neve seja bondosa e tenha riqueza interior na alma, ela ainda
é muito ingênua e não tem consciência de suas luzes e sombras. Por essa razão,
ela necessitará passar por provações até ser despertada e iluminada
definitivamente. E, por mais paradoxal que possa parecer, somente iluminamos
nossa alma quando passamos pela escuridão.
Por
mais que sejamos bons, a iluminação somente ocorrerá quando tivermos
consciência das próprias sombras e pararmos de cair nas armadilhas de nossos
medos inconscientes. Nesse sentido, o psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung
dizia: “Uma pessoa não se torna iluminada
ao imaginar figurinhas de luz. Uma pessoa torna-se iluminada ao tornar a
escuridão consciente.”
Uma
das melhores formas de se conectar com a alma é por meio de arquétipos,
símbolos, mitos e manifestações artísticas. Quando nós nos identificamos com um
personagem ou com um conto de fadas, descobrimos mais sobre nós mesmos.
Vale
salientar que Branca de Neve tem uma conexão muito forte com a música: ela gosta
de cantar e alguns anões tocam instrumentos musicais. A música tem vínculo
direito com os processos anímicos e é capaz de alterar as emoções. Com a música
e a dança, ela torna a casa mais graciosa e alegre.
E,
quando ela já estava integrando as forças anímicas distintas e vivendo em
harmonia, graça e alegria com os anões, eis que surge a prova final: a maçã
envenenada. Assim que a bruxa descobre que Branca de Neve esta viva, ela se
disfarça como uma velha e vai até a casa dos anões com uma cesta de maçãs.
Naquele
momento da dissimulação da bruxa, Branca de Neve está sozinha em casa enquanto
os anões estão garimpando. A princesa precisa encarar a sós a malícia e acaba
caindo naquela armadilha por sua própria inocência. Somente a sabedoria pode
nos livrar das armadilhas do mal, pois o bem, por si só, não elimina o mal
prontamente se for inocente.
A
bruxa se disfarça de velha, revelando que, além do veneno malévolo da maçã, a
fruta também pode carregar certa dose de sabedoria (o mesmo veneno que mata é
capaz de curar para a alquimia). O velho é o símbolo do saber e do tempo, o
qual é representado por Cronos e pelo planeta do karma na Astrologia ─ Saturno.
Quando
Branca de Neve morde a maçã com o veneno da bruxa, ela logo desmaia,
evidenciando o choque entre a sua inocência e a malícia contida na fruta. É
como se, naquele momento, a alma da princesa sofresse um “apagão”, e houvesse
um conflito entre o seu antigo ser (inocente, despreparado e distraído) e o
novo ser que precisa surgir a partir dali (mais esperto, sábio, concentrado e
maduro).
Exemplo:
cai a energia de um sistema ou desligamos uma determinada fonte e, quando
ligamos a fonte elétrica novamente, a luz retorna mais forte. É isso que
acontece nos períodos de transição em nossas vidas: eles são dolorosos, obscuros
e penosos, mas não pense que eles apagarão a sua luz. Sabe-se que a luz sempre
volta mais forte após um “apagão”.
Quando
Branca de Neve desmaia, ela aparenta estar morta, e a bruxa pensa que o seu
plano deu certo (e que passará a ser a mais bela). Entretanto, a bruxa está enganada:
Branca de Neve ainda está viva e um beijo de amor verdadeiro pode despertá-la
(o amor verdadeiro sempre é o melhor antídoto contra o veneno da malícia e a
melhor maneira para acender uma luz de volta).
Vale
lembrar que a bruxa tem um trágico fim: ela cai em um penhasco (contos de fadas
amam matar os personagens ruins dessa maneira hehehe) e uma grande pedra ainda
esmaga o seu corpo (tanta preocupação com o aspecto físico do seu corpo não
adiantou nada).
Na
cena da morte da bruxa, vemos urubus rondando o local. Os urubus são as aves
carniceiras que se alimentam dos restos orgânicos em putrefação. Por essa
razão, eles simbolizam a morte, o lado obscuro da vida e as renovações dos
ciclos da natureza. Os urubus estariam vinculados aos arquétipos astrológicos
de escorpião e plutão: aqueles que limpam o que é velho, tóxico e repugnante
para que o novo possa nascer. A morte da vilã simbolizou o fim de um ciclo
tóxico ─ onde Branca de Neve era submissa ─ e o início de um ciclo mais
revigorado ─ a partir do despertar de Branca de Neve para a nova vida.
Ao
verem Branca de Neve desmaiada, os anões pensam que ela está morta, mas não têm
coragem de enterrá-la devido à beleza dela. Então, eles a colocam em um caixão
de vidro e fazem um extenso “velório” no bosque.
Nos
contos de fadas, a morte é o simbolismo da transmutação. Na maioria das vezes,
a morte representará ressurreição, transformação, redenção, amadurecimento,
mudança de personalidade e renovação de um ciclo nesses contos.
Costumo
dizer que, quando superamos velhos medos ou “lapidamos” a nossa personalidade,
nosso velho eu morre para um novo eu nascer. Eis a tarefa do alquimista:
transformar metal inferior em ouro. Nesse sentido, para que uma joia possa
nascer em seu esplendor, o metal inferior deve “morrer”. No esoterismo, há a
analogia da pedra bruta e da pedra polida: nossa alma é como se fosse uma pedra
bruta que precisa ser lapidada até ser transformada em pedra polida.
Salienta-se
outra interpretação simbólica igualmente valiosa: a passagem da infância para a
vida adulta é como se fosse uma “morte” da personalidade imatura para que a
maturidade possa nascer (essa analogia é comum em contos infantis, já que toda
criança enfrentará essa transformação um dia).
Enquanto
Branca de Neve dorme em seu caixão de vidro (parece até uma estufa), passa um
príncipe montado em um cavalo branco que reconhece a princesa. O príncipe
apenas aparece duas vezes na Animação: no início do filme (cantando para a
Branca de Neve) e no final do filme (beijando a princesa). Todavia, devemos
lembrar que um conto é uma narrativa curta, razão pela qual podemos considerar
que o conto trata de uma fração daquela história.
Sendo
assim, fica subentendido que a relação entre o príncipe e a princesa era longa
e consolidada, diferentemente das críticas aos príncipes que rondam por aí como
se eles fossem personagens superficiais que surgem repentinamente. Em verdade,
eles são personagens importantes e acaba ficando oculta a profundidade do
vínculo entre eles e as princesas, pois as narrativas de contos de fadas
abreviam as cenas com eles (repito que contos são frações de histórias e nós
devemos supor que elas sejam mais complexas e longas do que as porções que
assistimos).
O
príncipe vem montado em um cavalo branco (mais uma vez um animal bem simbólico
em relação aos instintos), e devemos lembrar que o cavalo branco significa a
pureza (a cor alva remete à pureza) dos instintos (cavalos são animais fortes,
vigorosos e condutores, assim como nossos instintos). No momento em que ele a
beija, ela acorda de seu sono profundo. O beijo é como se fosse um “estalo”
espiritual, um efeito “eureka” do
despertar místico para uma nova vida ─ com o espírito mais maduro, sábio e
esperto.
Os
instintos dela estão revigorados, purificados e prontos para conduzir a sua nova
vida para o melhor rumo (o cavalo branco representa bem esta parte). É preciso
lembrar que, enquanto os urubus remetiam ao signo de escorpião, o cavalo branco
remete ao arquétipo astrológico de sagitário. Após mergulhar nas profundezas
obscuras de escorpião, precisamos ser como o centauro arqueiro que aponta a
flecha para cima e alça novo voo.
O
inconsciente dela está em harmonia com o consciente, assim como o aspecto
feminino, lunar e intuitivo da alma está unido ao aspecto masculino, solar e
lógico. Tais uniões, integrações e vitórias harmônicas da alma são
representadas pelo casamento entre o príncipe e a princesa no final.
Branca
de Neve, assim como a maioria dos contos de fadas, representa a importância de
perseverar na jornada da virtude apesar de todas as suas provações. Afinal, o
que Branca de Neve fez para merecer tantas provações? Ela era uma pessoa
bondosa, pura e que nunca havia feito mal a ninguém. Entretanto, coisas ruins
também acontecem para as pessoas boas e, paradoxalmente, as pessoas boas são as
mais provadas e perseguidas.
Ela
sofreu tentativas de homicídio somente por ser mais bela que a rainha (vejam só
como a beleza feminina incomoda). Reparem na motivação criminosa da rainha: ela
é absurda (um tremendo motivo torpe para falar a verdade como advogada agora
hehehe). Nesse contexto, vale lembrar que os contos de fadas são maniqueístas
(dividem o bem e o mal entre mocinhos e vilões) e usam hipérboles (figuras de
linguagem que invocam o exagero). Contudo, eles evidenciam muitos conceitos
verdadeiros sobre a vida real, especialmente a luta entre o bem e o mal que
vive dentro de todos nós e a vitória do amor sobre os sentimentos ruins como a
inveja e a ira da bruxa. Os contos de fadas também mostram que até os
personagens bons sofrem.
Por
mais que Branca de Neve fosse uma pessoa boa, ela não ficou livre de
sofrimento. As virtudes não eximem uma pessoa da dor emocional. Muito pelo
contrário: as pessoas virtuosas são as mais “castigadas” pela vida inúmeras
vezes. Nietzsche costumava dizer “é pelas próprias virtudes que se é mais bem
castigado.” Este filósofo também afirmava que “a vida vai ficando mais dura
perto do topo”. Nesse sentido, eu costumo dizer que não devemos desistir da
vida por causa de suas turbulências e ainda uso um exemplo simples como o avião
─ é preciso voar para sentir as turbulências.
Não
se sinta injustiçado se você for perseguido por uma virtude (beleza,
inteligência ou sabedoria), pois provações fazem parte de todas as jornadas.
Muitas pessoas dizem sobre o preconceito que as pessoas diferentes dos “padrões”
sofrem ou dos julgamentos que a pessoa fora da beleza “padrão” sofre, mas
esquecem de citar que as pessoas belas e aparentemente “adequadas” à sociedade
também choram, sofrem angústias, perseguições, rejeições, preconceitos e
julgamentos como todo mundo. A dor é inerente à vida humana e todas as pessoas
sofrem provações em suas jornadas, mas a vida permanecerá para sempre bela
apesar de tudo.
Belas
princesas adormecidas que acordam após um tempo vão muito além do literal: elas
representam o belo espírito e a beleza moral que dormem em nós sob tantos
pensamentos ruins e sentimentos feios ou ignorantes. Precisamos acordar a
beleza de nossos corações e despertamos para uma nova vida com mais sabedoria e
amor. Afinal, como dizia Khalil Gibran, a beleza é uma luz no coração. Que nós
possamos querer a verdade, fazer o bem, amar o belo e fazer o que é justo como
dizia o mago Éliphas Levi.
E, por
fim, espero que você não desista da jornada da luz e do bem por causa das
provações, pois o sempre triunfa e tem final feliz (como em um conto de fadas)
embora seja perseguido.
Texto
escrito por Tatyana Casarino
*O tema deste texto foi sugerido por leitores há muito tempo, mas demorei para escrever por querer mergulhar profundamente nos arquétipos místicos deste Conto de Fadas.
*Confira também:
*O Significado Místico de A Bela Adormecida:
*Ensinamentos Místicos de A Bela e a Fera:
*Poesia "Quando as virtudes castigam", onde descrevo as provações de algumas virtudes como beleza, inteligência e sabedoria além de incentivar a jornada de luz:
*Por que mulheres bonitas sofrem? -- Um vídeo do filósofo Luiz Felipe Pondé que indaga sobre o incômodo que mulheres bonitas geram na sociedade e explica alguns motivos para isso acontecer. Para quem quiser estudar mais o assunto, sugiro o vídeo desse filósofo que admiro, já que a postagem de hoje abordou temas como rivalidade feminina, inveja e a perseguição de Branca de Neve por causa de sua beleza.
*Undertale OST: 031 - Waterfall -- Uma música instrumental que me inspirou a mergulhar nos mistérios da alma humana e dos arquétipos místicos. Sugiro que o leitor ouça a música para entrar no "clima" de mistério. A música é bem misteriosa e inspiradora.
Mais uma postagem que incentiva o autoconhecimento. "Conhece-te a ti mesmo" -- Sócrates
Tatyana Casarino
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